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95 anos de missões cumpridas

Pesquisador emérito da Fiocruz e vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura (2000), Luís Rey comemorou aniversário nesta terça-feira (26/03) com muitas histórias para contar
Por Jornalismo IOC26/03/2013 - Atualizado em 04/04/2021

Como em um eletrizante livro de ficção, a trajetória do médico e pesquisador emérito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Luís Rey, nos leva a cenários exóticos repletos de perigos, missões quase impossíveis e uma grande história de amor com final feliz. Nesta terça-feira, 26 de março, ele completou 95 anos de vida. Destes, 60 foram dedicados ao ensino da parasitologia, 13 a trabalhos como consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) e 20 à Fiocruz. Todos vividos ao lado de Dora Vanderley Rey, geógrafa com quem é casado há 63 anos.

Perseguido pela Ditadura, Rey levou seu conhecimento em parasitologia e saúde pública a três continentes. Foto: Gutemberg Brito

“Eu mudei muito e nunca tive medo de mudar. Me entreguei a várias atividades sucessivamente. Variar as experiências enriquece o conhecimento, e isso é muito importante”, disse, relembrando o início da carreira. Não por acaso o verbo ‘mudar’ é uma constante na conversa com Rey. Ao se formar pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1944, ele já tinha abandonado a especialização em esquizofrenia pela cardiologia. Mas a vontade de promover mudanças contundentes na sociedade não cabia em um consultório na capital paulista. Dois anos depois, por sugestão do professor e amigo Samuel Pessoa, chegava ao interior do Pará para assumir os atendimentos no posto do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), no coração da floresta amazônica. Mas a sensação de impotência diante do ciclo de reinfecção dos seus pacientes o levou de volta à USP para estudar Saúde Pública e, em seguida, para a École Nationale de la Santé Publique, em Paris, graças a uma bolsa do governo francês. “Sem prevenção, a saúde é areia movediça”, ele diria para filha Heloísa décadas depois. Assim como seus dois irmãos, Clara e Luís Carlos, Heloísa também abraçou a medicina.

Rey em 1944: antes de se dedicar à parasitologia, teve um consultório de cardiologia. Foto: Arquivo Pessoal

Rumo à 'cidade das luzes’, Rey conheceu aquela que, até hoje, é sua luz em tempos de escuridão. A geógrafa e bolsista Dora Vanderley Rey, funcionária da Fundação Getúlio Vargas (FGV), tinha apenas 20 anos e nem pensava em se casar. “Quando eu embarquei, a última coisa que eu queria era encontrar um marido, eu era muito jovem. Nos conhecemos no navio e ficamos muito amigos”, conta Dora. Mas um ano de convivência e viagens pela Europa a fizeram mudar de ideia. Em 1950, o casal retornou ao Brasil noivo – mas só se casaram quando Rey encontrou um emprego. No entanto, seria apenas em 1961 que ele encontraria ‘O’ emprego: após aprovação em concurso, se tornou professor assistente substituto na cadeira de parasitologia da Faculdade de Medicina da USP.

A filha Heloísa, que hoje tem 61 anos, atribui a ‘falta de imaginação coletiva’ dos irmãos na escolha da profissão às habilidades notáveis do pai como professor. “Ele era capaz de responder mil vezes à mesma pergunta sobre uma foto de DNA de bactéria na capa de um livro. E a explicação podia durar horas que ninguém descolava da cadeira”, lembrou.

Rey e Dora (dir), em 1948, com os bolsistas em passeio a Chamonix, na França. Foto: Arquivo Pessoal

Embora satisfeito com o trabalho, o desejo por mudanças – tanto na Saúde Pública quanto na sociedade – não silenciara em Rey. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por 12 anos, teve suas ideologias esmagadas e o emprego tomado pelo golpe militar de 1964. Foi demitido da USP, junto a outros colegas, com base no Ato Institucional nº 1, que cassou os direitos políticos de cidadãos vistos como opositores ao regime. Era o início do exílio, que o levaria a viver em cinco países diferentes em 18 anos. A filha caçula, Clara Rey, 57 anos, lembra das passagens pela Venezuela, México, Tunísia e Suíça. “Eu tinha apenas 9 anos quando me vi repentinamente afastada da minha grande família e dos amigos. Foi a força do amor, da coesão e da firmeza de caráter dos meus pais que me guiaram pelo mundo”, avaliou. Imersos em culturas plurais, os três filhos seriam estimulados a enxergar as oportunidades de cada lugar e a buscar semelhanças com a própria pátria, que somente os receberia de volta décadas depois.

Com os filhos no México, em 1966: exílio. Foto: Arquivo Pessoal

 

A primeira missão internacional

Fugindo dos algozes da Ditadura, Rey conheceria seu próximo inimigo em um cenário exótico, tal qual um protagonista de aventura. Tratava-se de uma epidemia de esquistossomose na África. “Consegui um emprego como consultor da OMS e minha primeira missão foi acabar com a doença na Tunísia, que se propagava rapidamente pelos oásis do deserto do Saara”, contou. Foram quatro anos vivendo no deserto, trabalhando no combate aos caramujos transmissores e no tratamento dos casos de infecção. “O resultado foi a erradicação da doença”, relembra, orgulhoso. Rey tinha, finalmente, transformado a vida de milhares de pessoas como sempre sonhara. “Sonho muito, mas sonho para produzir, criar e encontrar soluções para os problemas”, explicou.

Arábia Saudita (1981) foi um dos destinos de Rey como consultor da OMS. Foto: Arquivo Pessoal

Com o sucesso da missão, em 1974, Rey levou a família para Genebra, na Suíça, onde foi responsável pela criação de programas internacionais de saúde e assumiu um posto na Divisão de Malária e Doenças Parasitárias. Nos anos 80, voltaria à África, desta vez, para Maputo, em meio à Guerra Civil Moçambicana. À frente do Instituto Nacional de Saúde (INS), ministrou aulas de parasitologia, fundou a Revista Médica de Moçambique e abriu portas para o intercâmbio científico com o Brasil. No ano de 2008, foi inaugurado o Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, capitaneado pelo IOC e realizado em parceira com o INS. O consórcio já formou duas turmas de mestrado, duplicando o número de funcionários mestres no quadro do INS e lhes rendendo, ainda, posições de liderança no Ministério da Saúde local.

INS, em Maputo: fortalecimento do ensino. Foto: Arquivo Pessoal

“É importante que o médico e o pesquisador tenham uma vida construtiva. O conhecimento deve gerar capacidade de ação, senão, não vale de nada. Não importa se ele faz clínica, dá aulas ou pesquisa. É preciso ser eficiente e produtivo”, pontua Rey. Em 1985, após 15 anos de luta junto ao Supremo Tribunal Federal, o médico ganhou o processo contra sua demissão da USP. Era hora de retornar ao Brasil ao lado de Dora, sua ‘pátria em tempos de exílio’, conforme a dedicatória no ‘Dicionário de Termos Técnicos de Medicina e Saúde’ (Guanabara Koogan, 1999). Convidado inicialmente para assumir a chefia do Departamento de Helmintologia do IOC, Rey criou o Laboratório de Biologia e Controle da Esquistossomose (hoje chamado de Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios), que liderou até 2005. Realizou atividades no Departamento de Medicina Tropical e aceitou o convite do sanitarista Sérgio Arouca, então presidente da Fiocruz, para dirigir o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz). 

Armas poderosas

Mais de meio século de profissão exercida em três continentes diferentes estão eternizados em oito títulos publicados, dentre eles, uma autobiografia chamada ‘Um médico e dois exílios’ (2005). Transmitir seu conhecimento e experiência para o papel sempre foi prioridade. “Enquanto professor, eu sentia necessidade de deixar alguma coisa concreta, afinal, ensinar não se restringe a fazer discursos; é criar instrumentos de trabalhos que armem os alunos de recursos, permitindo que eles apliquem o conhecimento na ausência do professor”, explicou. O ‘Dicionário’ demandou mais de cinco anos de pesquisa, colaboração de inúmeros especialistas e muitos ‘pitacos’ de Dora. O reconhecimento não veio apenas da comunidade científica: o livro conquistou o prêmio Jabuti de Literatura de 2000, na categoria Ciências Naturais e Saúde.

'Dicionário' teve muitos pitacos de Dora e rendeu Prêmio Jabuti de Literatura ao autor. Foto: Gutemberg Brito

Hoje, Rey vive em uma instituição de longa permanência para idosos em Niterói, no Rio de Janeiro, e recebe os cuidados médicos de um de seus leitores: Gladston Paula Santos, sócio e geriatra da instituição. Em 1980, Gladston pleiteava uma vaga de monitor de parasitologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e percorreu o Rio de Janeiro em busca de um exemplar do ‘Parasitologia’ para estudar para a prova. Finalmente, conseguiu encontrar uma edição de 1972 em um sebo em Copacabana. Mal sabia ele que o livro que o ajudou a conseguir o trabalho seria autografado, 32 anos depois, pelo autor em pessoa. De acordo com Gladston, as obras do médico traziam algo além do conteúdo técnico e, por isso, eram difíceis de encontrar na época. “Rey tinha uma visão crítica e falava das questões sociais que influenciavam na propagação das doenças. Tocava na ferida da Ditadura quando dizia que o problema era de ordem sanitária, de controle de hospedeiro, e da vulnerabilidade da camada pobre da população. Ele não separava o parasita do meio em que estava inserido e foi um dos primeiros da área a falar de ecologia”, relatou.

Rey reclama que a memória anda enfraquecendo – motivo pelo qual ele se orgulha das obras escritas. “O sujeito se desenvolve ao máximo, mas, com o tempo, vai perdendo a memória do mesmo modo que perde a força física. A vantagem foi que eu coloquei tudo pra fora (batendo na capa dura do Dicionário, que tem quase mil páginas). Eu escrevi”, conclui. 

A aliada

Com o rosto iluminado, ele ressalta o papel da esposa em sua trajetória repleta de aventuras. “O apoio incondicional dela me deu razões para seguir em frente, garantias de que eu nunca estaria sozinho e sustentáculos para enfrentar todos os graves problemas que enfrentamos. Um homem precisa de aliados e ela foi uma companheira de todos os dias”, diz. Todos os dias que, juntos, já totalizam 63 anos. Qual o segredo de um casamento feliz e duradouro? De acordo com Rey, o mesmo para ser um bom médico: predisposição a gostar de gente, saúde mental e dedicação. “Muitos casamentos não dão certo porque a cabeça do homem não funciona bem, então ele faz bobagem e cria problemas. Mas quando ele gosta de pessoas, ele procura sempre agradá-las e fica feliz ao fazê-las felizes – principalmente a esposa”, esclareceu. Dentre os agrados, estão as dedicatórias para Dora em forma de poesia, presentes em cada uma das oito publicações de Rey.

Inseparáveis desde 1948. Foto: Arquivo Pessoal/Gutemberg Brito

Mas, para ela, são a honestidade e o comprometimento com os problemas sociais – tanto no trabalho quanto na esfera ideológica – as maiores qualidades do marido. Já a filha Clara ressalta a serenidade do pai. “Acredito que seja fruto da vivência longa e intensa que ele tem. Tenho me lembrado muito disso no meu cotidiano, principalmente quando a vida me apresenta dificuldades e contratempos”, apontou.

Biológicos ou políticos, Rey pode ter derrotado todos os inimigos que cruzaram seu caminho, mas um – talvez o mais desafiador – ainda permanece de pé: o modelo econômico e político que condena a população a viver em desigualdade de renda e oportunidades.

“Tive alunos em três continentes, três filhos e um neto médicos. Agora é com eles”, finalizou.

*Reportagem: Isadora Marinho

Pesquisador emérito da Fiocruz e vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura (2000), Luís Rey comemorou aniversário nesta terça-feira (26/03) com muitas histórias para contar
Por: 
jornalismo

Como em um eletrizante livro de ficção, a trajetória do médico e pesquisador emérito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Luís Rey, nos leva a cenários exóticos repletos de perigos, missões quase impossíveis e uma grande história de amor com final feliz. Nesta terça-feira, 26 de março, ele completou 95 anos de vida. Destes, 60 foram dedicados ao ensino da parasitologia, 13 a trabalhos como consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) e 20 à Fiocruz. Todos vividos ao lado de Dora Vanderley Rey, geógrafa com quem é casado há 63 anos.

Perseguido pela Ditadura, Rey levou seu conhecimento em parasitologia e saúde pública a três continentes. Foto: Gutemberg Brito

“Eu mudei muito e nunca tive medo de mudar. Me entreguei a várias atividades sucessivamente. Variar as experiências enriquece o conhecimento, e isso é muito importante”, disse, relembrando o início da carreira. Não por acaso o verbo ‘mudar’ é uma constante na conversa com Rey. Ao se formar pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1944, ele já tinha abandonado a especialização em esquizofrenia pela cardiologia. Mas a vontade de promover mudanças contundentes na sociedade não cabia em um consultório na capital paulista. Dois anos depois, por sugestão do professor e amigo Samuel Pessoa, chegava ao interior do Pará para assumir os atendimentos no posto do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), no coração da floresta amazônica. Mas a sensação de impotência diante do ciclo de reinfecção dos seus pacientes o levou de volta à USP para estudar Saúde Pública e, em seguida, para a École Nationale de la Santé Publique, em Paris, graças a uma bolsa do governo francês. “Sem prevenção, a saúde é areia movediça”, ele diria para filha Heloísa décadas depois. Assim como seus dois irmãos, Clara e Luís Carlos, Heloísa também abraçou a medicina.

Rey em 1944: antes de se dedicar à parasitologia, teve um consultório de cardiologia. Foto: Arquivo Pessoal

Rumo à 'cidade das luzes’, Rey conheceu aquela que, até hoje, é sua luz em tempos de escuridão. A geógrafa e bolsista Dora Vanderley Rey, funcionária da Fundação Getúlio Vargas (FGV), tinha apenas 20 anos e nem pensava em se casar. “Quando eu embarquei, a última coisa que eu queria era encontrar um marido, eu era muito jovem. Nos conhecemos no navio e ficamos muito amigos”, conta Dora. Mas um ano de convivência e viagens pela Europa a fizeram mudar de ideia. Em 1950, o casal retornou ao Brasil noivo – mas só se casaram quando Rey encontrou um emprego. No entanto, seria apenas em 1961 que ele encontraria ‘O’ emprego: após aprovação em concurso, se tornou professor assistente substituto na cadeira de parasitologia da Faculdade de Medicina da USP.

A filha Heloísa, que hoje tem 61 anos, atribui a ‘falta de imaginação coletiva’ dos irmãos na escolha da profissão às habilidades notáveis do pai como professor. “Ele era capaz de responder mil vezes à mesma pergunta sobre uma foto de DNA de bactéria na capa de um livro. E a explicação podia durar horas que ninguém descolava da cadeira”, lembrou.

Rey e Dora (dir), em 1948, com os bolsistas em passeio a Chamonix, na França. Foto: Arquivo Pessoal

Embora satisfeito com o trabalho, o desejo por mudanças – tanto na Saúde Pública quanto na sociedade – não silenciara em Rey. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) por 12 anos, teve suas ideologias esmagadas e o emprego tomado pelo golpe militar de 1964. Foi demitido da USP, junto a outros colegas, com base no Ato Institucional nº 1, que cassou os direitos políticos de cidadãos vistos como opositores ao regime. Era o início do exílio, que o levaria a viver em cinco países diferentes em 18 anos. A filha caçula, Clara Rey, 57 anos, lembra das passagens pela Venezuela, México, Tunísia e Suíça. “Eu tinha apenas 9 anos quando me vi repentinamente afastada da minha grande família e dos amigos. Foi a força do amor, da coesão e da firmeza de caráter dos meus pais que me guiaram pelo mundo”, avaliou. Imersos em culturas plurais, os três filhos seriam estimulados a enxergar as oportunidades de cada lugar e a buscar semelhanças com a própria pátria, que somente os receberia de volta décadas depois.

Com os filhos no México, em 1966: exílio. Foto: Arquivo Pessoal

 

A primeira missão internacional

Fugindo dos algozes da Ditadura, Rey conheceria seu próximo inimigo em um cenário exótico, tal qual um protagonista de aventura. Tratava-se de uma epidemia de esquistossomose na África. “Consegui um emprego como consultor da OMS e minha primeira missão foi acabar com a doença na Tunísia, que se propagava rapidamente pelos oásis do deserto do Saara”, contou. Foram quatro anos vivendo no deserto, trabalhando no combate aos caramujos transmissores e no tratamento dos casos de infecção. “O resultado foi a erradicação da doença”, relembra, orgulhoso. Rey tinha, finalmente, transformado a vida de milhares de pessoas como sempre sonhara. “Sonho muito, mas sonho para produzir, criar e encontrar soluções para os problemas”, explicou.

Arábia Saudita (1981) foi um dos destinos de Rey como consultor da OMS. Foto: Arquivo Pessoal

Com o sucesso da missão, em 1974, Rey levou a família para Genebra, na Suíça, onde foi responsável pela criação de programas internacionais de saúde e assumiu um posto na Divisão de Malária e Doenças Parasitárias. Nos anos 80, voltaria à África, desta vez, para Maputo, em meio à Guerra Civil Moçambicana. À frente do Instituto Nacional de Saúde (INS), ministrou aulas de parasitologia, fundou a Revista Médica de Moçambique e abriu portas para o intercâmbio científico com o Brasil. No ano de 2008, foi inaugurado o Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, capitaneado pelo IOC e realizado em parceira com o INS. O consórcio já formou duas turmas de mestrado, duplicando o número de funcionários mestres no quadro do INS e lhes rendendo, ainda, posições de liderança no Ministério da Saúde local.

INS, em Maputo: fortalecimento do ensino. Foto: Arquivo Pessoal

“É importante que o médico e o pesquisador tenham uma vida construtiva. O conhecimento deve gerar capacidade de ação, senão, não vale de nada. Não importa se ele faz clínica, dá aulas ou pesquisa. É preciso ser eficiente e produtivo”, pontua Rey. Em 1985, após 15 anos de luta junto ao Supremo Tribunal Federal, o médico ganhou o processo contra sua demissão da USP. Era hora de retornar ao Brasil ao lado de Dora, sua ‘pátria em tempos de exílio’, conforme a dedicatória no ‘Dicionário de Termos Técnicos de Medicina e Saúde’ (Guanabara Koogan, 1999). Convidado inicialmente para assumir a chefia do Departamento de Helmintologia do IOC, Rey criou o Laboratório de Biologia e Controle da Esquistossomose (hoje chamado de Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios), que liderou até 2005. Realizou atividades no Departamento de Medicina Tropical e aceitou o convite do sanitarista Sérgio Arouca, então presidente da Fiocruz, para dirigir o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS/Fiocruz). 

Armas poderosas

Mais de meio século de profissão exercida em três continentes diferentes estão eternizados em oito títulos publicados, dentre eles, uma autobiografia chamada ‘Um médico e dois exílios’ (2005). Transmitir seu conhecimento e experiência para o papel sempre foi prioridade. “Enquanto professor, eu sentia necessidade de deixar alguma coisa concreta, afinal, ensinar não se restringe a fazer discursos; é criar instrumentos de trabalhos que armem os alunos de recursos, permitindo que eles apliquem o conhecimento na ausência do professor”, explicou. O ‘Dicionário’ demandou mais de cinco anos de pesquisa, colaboração de inúmeros especialistas e muitos ‘pitacos’ de Dora. O reconhecimento não veio apenas da comunidade científica: o livro conquistou o prêmio Jabuti de Literatura de 2000, na categoria Ciências Naturais e Saúde.

'Dicionário' teve muitos pitacos de Dora e rendeu Prêmio Jabuti de Literatura ao autor. Foto: Gutemberg Brito

Hoje, Rey vive em uma instituição de longa permanência para idosos em Niterói, no Rio de Janeiro, e recebe os cuidados médicos de um de seus leitores: Gladston Paula Santos, sócio e geriatra da instituição. Em 1980, Gladston pleiteava uma vaga de monitor de parasitologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e percorreu o Rio de Janeiro em busca de um exemplar do ‘Parasitologia’ para estudar para a prova. Finalmente, conseguiu encontrar uma edição de 1972 em um sebo em Copacabana. Mal sabia ele que o livro que o ajudou a conseguir o trabalho seria autografado, 32 anos depois, pelo autor em pessoa. De acordo com Gladston, as obras do médico traziam algo além do conteúdo técnico e, por isso, eram difíceis de encontrar na época. “Rey tinha uma visão crítica e falava das questões sociais que influenciavam na propagação das doenças. Tocava na ferida da Ditadura quando dizia que o problema era de ordem sanitária, de controle de hospedeiro, e da vulnerabilidade da camada pobre da população. Ele não separava o parasita do meio em que estava inserido e foi um dos primeiros da área a falar de ecologia”, relatou.

Rey reclama que a memória anda enfraquecendo – motivo pelo qual ele se orgulha das obras escritas. “O sujeito se desenvolve ao máximo, mas, com o tempo, vai perdendo a memória do mesmo modo que perde a força física. A vantagem foi que eu coloquei tudo pra fora (batendo na capa dura do Dicionário, que tem quase mil páginas). Eu escrevi”, conclui. 

A aliada

Com o rosto iluminado, ele ressalta o papel da esposa em sua trajetória repleta de aventuras. “O apoio incondicional dela me deu razões para seguir em frente, garantias de que eu nunca estaria sozinho e sustentáculos para enfrentar todos os graves problemas que enfrentamos. Um homem precisa de aliados e ela foi uma companheira de todos os dias”, diz. Todos os dias que, juntos, já totalizam 63 anos. Qual o segredo de um casamento feliz e duradouro? De acordo com Rey, o mesmo para ser um bom médico: predisposição a gostar de gente, saúde mental e dedicação. “Muitos casamentos não dão certo porque a cabeça do homem não funciona bem, então ele faz bobagem e cria problemas. Mas quando ele gosta de pessoas, ele procura sempre agradá-las e fica feliz ao fazê-las felizes – principalmente a esposa”, esclareceu. Dentre os agrados, estão as dedicatórias para Dora em forma de poesia, presentes em cada uma das oito publicações de Rey.

Inseparáveis desde 1948. Foto: Arquivo Pessoal/Gutemberg Brito

Mas, para ela, são a honestidade e o comprometimento com os problemas sociais – tanto no trabalho quanto na esfera ideológica – as maiores qualidades do marido. Já a filha Clara ressalta a serenidade do pai. “Acredito que seja fruto da vivência longa e intensa que ele tem. Tenho me lembrado muito disso no meu cotidiano, principalmente quando a vida me apresenta dificuldades e contratempos”, apontou.

Biológicos ou políticos, Rey pode ter derrotado todos os inimigos que cruzaram seu caminho, mas um – talvez o mais desafiador – ainda permanece de pé: o modelo econômico e político que condena a população a viver em desigualdade de renda e oportunidades.

“Tive alunos em três continentes, três filhos e um neto médicos. Agora é com eles”, finalizou.

*Reportagem: Isadora Marinho

Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)

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