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Um algoritmo para a publicação científica?

Em comentário, editor da revista ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’ coloca em xeque aquilo que é legítimo e aceitável no âmbito da autorregulação da ciência
Por Jornalismo IOC12/06/2017 - Atualizado em 18/06/2021

Assim como já foi o alvo de debates no campo da propaganda e da publicidade, a autorregulação é tema central das discussões contemporâneas sobre a publicação científica. A diligência do cientista, ao redigir sobre seus dados, pode ser tão precisa quanto um algoritmo? Editor da revista ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’, o pesquisador Adeilton Brandão discute o tema em um comentário publicado no website da revista. Editada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) desde 1909, a revista ocupa posição de destaque na América Latina e tem, como compromisso fundamental, oferecer gratuitamente aos pesquisadores e leitores uma conduta eficiente e alinhada às melhores práticas para publicação de resultados de pesquisas científicas. Acompanhe o texto a seguir: 

A autorregulação da ciência: o que é legítimo e aceitável
Adeilton Brandão, editor da revista científica ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’

Em um mundo ideal, publicar os resultados da pesquisa científica pode ser comparado a um algoritmo com as seguintes etapas:

A) Obtenha todos os recursos necessários para concluir, em um período de tempo razoável, um projeto elaborado com o objetivo de testar uma hipótese científica;
B) escreva um texto conciso e objetivo descrevendo a hipótese testada, os métodos, a coleta de dados, a análise adotada para rejeitar ou apoiar a hipótese e as conclusões;
C) esteja ciente de sua responsabilidade como cientista e cumpra rigorosamente as recomendações éticas e as boas práticas da publicação científica;
D) decida se você vai comunicar os resultados da pesquisa através de um evento reunindo pesquisadores da sua área de atuação, livros ou revistas especializadas;
E) escolha um encontro científico apropriado (congresso, simpósio, conferência), uma editora de livros ou uma revista especializada (no caso dos artigos);
F) independentemente do meio escolhido, delimite cuidadosamente a comunidade de pesquisadores a quem você acha que os resultados da ciência possam gerar interesse e impacto (os seus resultados permitirão o avanço do trabalho de outros pesquisadores);
G) aguarde os comentários, as análises críticas e os relatos destes pesquisadores sobre as tentativas, bem-sucedidas ou não, em reproduzir ou ampliar os resultados científicos que você publicou;
H) se necessário, forneça, de maneira rigorosa e gentil, respostas aos comentários, críticas e relatos de seus colegas sobre as tentativas de reprodutibilidade malsucedidas [não fique zangado ou entre em desespero com as ações e demandas relativas ao passo ‘H’];
J) continue a refletir e a identificar novos problemas científicos e tente resolvê-los através de novos projetos para teste de hipóteses;
K) retorne ao passo ‘A’.

Espera-se que o algoritmo acima seja rigorosamente executado por um cientista diligente. No entanto, o mundo real é imperfeito, e, neste mundo, um fato em particular pode, às vezes, provocar um desvio nestas etapas: a intensa competição por recursos e por reconhecimento entre os cientistas. Em si mesma, a competição não é um problema: ela pode contribuir para resolver o conflito “recursos escassos versus demanda crescente”. O pensamento econômico iniciado por Adam Smith indica que a competição leva ao uso eficiente de recursos limitados e, se devidamente regulada, traz benefícios para a sociedade (sobre o tema, confira o texto de Stiglitz, 1991).

Mas o que isso tem a ver com a publicação científica no ambiente de pesquisa contemporâneo? Afinal, há autorregulação na ciência e em seus processos associados – como, por exemplo, a atividade editorial, a comunicação de pesquisas e a associação entre estudiosos. Aparentemente, não haveria necessidade de um agente externo para supervisionar o processo. Os cientistas geram novos fatos e eles mesmos decidem quais desses fatos vale a pena publicar – a maioria dos editores de revistas científicas, bem como os revisores dos artigos científicos (denominados revisores de pares), são cientistas em atividade. O que está errado com isto? Bem, do ponto de vista da regulação formal (ou oficial) da competição entre pares na ciência, não foi estabelecido ainda um agente externo, livre de qualquer conflito de interesse para cuidar do que poderíamos definir como "o código virtuoso da prática científica". O surgimento dos “Comitês de Integridade em Pesquisa” em alguns países (por exemplo, o Office of Research Integrity dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos) pode ser considerado o início de tal regulação. No entanto, a ciência é uma atividade sem fronteiras, o que significa que a regulamentação mundial não é algo de fácil se implementar.

A questão essencial que podemos fazer agora é: há necessidade deste agente regulador? Alguns fatos dos bastidores do mundo científico apontam para uma resposta positiva. Em verdade, a disseminação desses fatos no ambiente da pesquisa levou à criação de comitês de integridade da pesquisa, a saber:

1) plágio e ausência de crédito para o trabalho de outros cientistas;
2) artigos fraudulentos apresentados como trabalho de pesquisa original;
3) roubo de dados / projetos / ideias / de um colega de laboratório ou colaboradores;
4) uso do mecanismo de revisão anônima pelos pares, na tentativa de impedir que os competidores divulguem seu trabalho de pesquisa;
5) falta de reconhecimento para aqueles que apoiaram a realização da pesquisa;
6) ampliação do escopo do trabalho de pesquisa, por exemplo, alegando ter resolvido um problema que está além da capacidade da metodologia utilizada ou não contemplada pelo projeto experimental;
7) no caso de editores, importantes agentes no mundo científico: lançar revistas científicas que tenham o único propósito de gerar dinheiro facilmente, sem compromisso com a ética editorial, o rigor científico ou o profissionalismo;
8) envio de manuscritos a revistas reconhecidas como ‘caça-níqueis’, ‘revistas predatórias’ ou pseudo-revistas;
9) valorizar de forma exagerada a ‘equação de pontuação da publicação’: pesquisador bem sucedido é igual a X artigos publicados em T anos com fator de impacto Y e Z citações;
10) fracionamento dos resultados da pesquisa em muitos ‘novos artigos científicos’. 

Como algumas dessas práticas são aceitas e mesmo encorajadas em certos países – por exemplo, para que um cientista seja bem sucedido em universidades e centros de pesquisa brasileiros, é condição indispensável a publicação de muitos artigos em curtos períodos de tempo –, qualquer comitê ou instância relacionada à integridade da pesquisa pode lidar apenas parcialmente com tais questões. Isso devolve o problema aos próprios cientistas: eles devem chegar a um consenso sobre o que é legítimo e aceitável no âmbito da prática científica.

A maioria das práticas listadas anteriormente são claramente inaceitáveis, como notamos nos itens 1 a 8, por exemplo. Porém, para os dois últimos, não é incomum encontrar quem os defenda. Sem prejudicar o poder da concorrência na promoção do uso eficiente de recursos escassos e limitados, os cientistas e suas organizações precisam veicular uma mensagem muito clara para o mundo: mesmo que algumas práticas pareçam legítimas para alguns membros da comunidade científica, se estas mesmas práticas reduzirem os efeitos da política do ‘bem comum’, isto é, ações que resultarão no benefício da sociedade, elas não podem ser aceitas como boas práticas.

Para conhecer a versão original do comentário, em inglês, clique aqui.

Em comentário, editor da revista ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’ coloca em xeque aquilo que é legítimo e aceitável no âmbito da autorregulação da ciência
Por: 
jornalismo

Assim como já foi o alvo de debates no campo da propaganda e da publicidade, a autorregulação é tema central das discussões contemporâneas sobre a publicação científica. A diligência do cientista, ao redigir sobre seus dados, pode ser tão precisa quanto um algoritmo? Editor da revista ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’, o pesquisador Adeilton Brandão discute o tema em um comentário publicado no website da revista. Editada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) desde 1909, a revista ocupa posição de destaque na América Latina e tem, como compromisso fundamental, oferecer gratuitamente aos pesquisadores e leitores uma conduta eficiente e alinhada às melhores práticas para publicação de resultados de pesquisas científicas. Acompanhe o texto a seguir: 

A autorregulação da ciência: o que é legítimo e aceitável
Adeilton Brandão, editor da revista científica ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’

Em um mundo ideal, publicar os resultados da pesquisa científica pode ser comparado a um algoritmo com as seguintes etapas:

A) Obtenha todos os recursos necessários para concluir, em um período de tempo razoável, um projeto elaborado com o objetivo de testar uma hipótese científica;
B) escreva um texto conciso e objetivo descrevendo a hipótese testada, os métodos, a coleta de dados, a análise adotada para rejeitar ou apoiar a hipótese e as conclusões;
C) esteja ciente de sua responsabilidade como cientista e cumpra rigorosamente as recomendações éticas e as boas práticas da publicação científica;
D) decida se você vai comunicar os resultados da pesquisa através de um evento reunindo pesquisadores da sua área de atuação, livros ou revistas especializadas;
E) escolha um encontro científico apropriado (congresso, simpósio, conferência), uma editora de livros ou uma revista especializada (no caso dos artigos);
F) independentemente do meio escolhido, delimite cuidadosamente a comunidade de pesquisadores a quem você acha que os resultados da ciência possam gerar interesse e impacto (os seus resultados permitirão o avanço do trabalho de outros pesquisadores);
G) aguarde os comentários, as análises críticas e os relatos destes pesquisadores sobre as tentativas, bem-sucedidas ou não, em reproduzir ou ampliar os resultados científicos que você publicou;
H) se necessário, forneça, de maneira rigorosa e gentil, respostas aos comentários, críticas e relatos de seus colegas sobre as tentativas de reprodutibilidade malsucedidas [não fique zangado ou entre em desespero com as ações e demandas relativas ao passo ‘H’];
J) continue a refletir e a identificar novos problemas científicos e tente resolvê-los através de novos projetos para teste de hipóteses;
K) retorne ao passo ‘A’.

Espera-se que o algoritmo acima seja rigorosamente executado por um cientista diligente. No entanto, o mundo real é imperfeito, e, neste mundo, um fato em particular pode, às vezes, provocar um desvio nestas etapas: a intensa competição por recursos e por reconhecimento entre os cientistas. Em si mesma, a competição não é um problema: ela pode contribuir para resolver o conflito “recursos escassos versus demanda crescente”. O pensamento econômico iniciado por Adam Smith indica que a competição leva ao uso eficiente de recursos limitados e, se devidamente regulada, traz benefícios para a sociedade (sobre o tema, confira o texto de Stiglitz, 1991).

Mas o que isso tem a ver com a publicação científica no ambiente de pesquisa contemporâneo? Afinal, há autorregulação na ciência e em seus processos associados – como, por exemplo, a atividade editorial, a comunicação de pesquisas e a associação entre estudiosos. Aparentemente, não haveria necessidade de um agente externo para supervisionar o processo. Os cientistas geram novos fatos e eles mesmos decidem quais desses fatos vale a pena publicar – a maioria dos editores de revistas científicas, bem como os revisores dos artigos científicos (denominados revisores de pares), são cientistas em atividade. O que está errado com isto? Bem, do ponto de vista da regulação formal (ou oficial) da competição entre pares na ciência, não foi estabelecido ainda um agente externo, livre de qualquer conflito de interesse para cuidar do que poderíamos definir como "o código virtuoso da prática científica". O surgimento dos “Comitês de Integridade em Pesquisa” em alguns países (por exemplo, o Office of Research Integrity dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos) pode ser considerado o início de tal regulação. No entanto, a ciência é uma atividade sem fronteiras, o que significa que a regulamentação mundial não é algo de fácil se implementar.

A questão essencial que podemos fazer agora é: há necessidade deste agente regulador? Alguns fatos dos bastidores do mundo científico apontam para uma resposta positiva. Em verdade, a disseminação desses fatos no ambiente da pesquisa levou à criação de comitês de integridade da pesquisa, a saber:

1) plágio e ausência de crédito para o trabalho de outros cientistas;
2) artigos fraudulentos apresentados como trabalho de pesquisa original;
3) roubo de dados / projetos / ideias / de um colega de laboratório ou colaboradores;
4) uso do mecanismo de revisão anônima pelos pares, na tentativa de impedir que os competidores divulguem seu trabalho de pesquisa;
5) falta de reconhecimento para aqueles que apoiaram a realização da pesquisa;
6) ampliação do escopo do trabalho de pesquisa, por exemplo, alegando ter resolvido um problema que está além da capacidade da metodologia utilizada ou não contemplada pelo projeto experimental;
7) no caso de editores, importantes agentes no mundo científico: lançar revistas científicas que tenham o único propósito de gerar dinheiro facilmente, sem compromisso com a ética editorial, o rigor científico ou o profissionalismo;
8) envio de manuscritos a revistas reconhecidas como ‘caça-níqueis’, ‘revistas predatórias’ ou pseudo-revistas;
9) valorizar de forma exagerada a ‘equação de pontuação da publicação’: pesquisador bem sucedido é igual a X artigos publicados em T anos com fator de impacto Y e Z citações;
10) fracionamento dos resultados da pesquisa em muitos ‘novos artigos científicos’. 

Como algumas dessas práticas são aceitas e mesmo encorajadas em certos países – por exemplo, para que um cientista seja bem sucedido em universidades e centros de pesquisa brasileiros, é condição indispensável a publicação de muitos artigos em curtos períodos de tempo –, qualquer comitê ou instância relacionada à integridade da pesquisa pode lidar apenas parcialmente com tais questões. Isso devolve o problema aos próprios cientistas: eles devem chegar a um consenso sobre o que é legítimo e aceitável no âmbito da prática científica.

A maioria das práticas listadas anteriormente são claramente inaceitáveis, como notamos nos itens 1 a 8, por exemplo. Porém, para os dois últimos, não é incomum encontrar quem os defenda. Sem prejudicar o poder da concorrência na promoção do uso eficiente de recursos escassos e limitados, os cientistas e suas organizações precisam veicular uma mensagem muito clara para o mundo: mesmo que algumas práticas pareçam legítimas para alguns membros da comunidade científica, se estas mesmas práticas reduzirem os efeitos da política do ‘bem comum’, isto é, ações que resultarão no benefício da sociedade, elas não podem ser aceitas como boas práticas.

Para conhecer a versão original do comentário, em inglês, clique aqui.

Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)