O SUS é racista?
Marcos Chor Maio
Simone Monteiro
Paulo Henrique A. Rodrigues*
Em 27 de outubro, dia da “Mobilização Nacional Pró-Saúde da População Negra”, noticiou-se que o Ministério da Saúde reconheceu a existência do racismo no atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal declaração veio associada à divulgação de dados sobre a maior incidência de AIDS, tuberculose, hipertensão arterial e mortalidade materna na população negra (pretos e pardos, segundo as categorias do IBGE) em comparação com a população branca.
Existe um conjunto de dados correlacionando pessoas de pele mais escura, classe social e desvantagens matérias e simbólicas, a exemplo das investigações nas áreas da educação e do trabalho. Nos campos da medicina e da saúde pública, pesquisas assinalam a inconsistência do uso do conceito de “raça” e os riscos no estabelecimento de vínculos entre “raça” e saúde, como a perigosa reiteração do determinismo biológico. Todavia, até remédios para “negros” já estão sendo comercializados.
Não temos dúvida sobre a presença do racismo no Brasil, mas há intensas controvérsias sobre a melhor forma de enfrentá-lo. No caso do SUS, pode haver manifestações de preconceito e de discriminação por parte de alguns profissionais, mas elas somente reproduzem o que ocorre na vida social. Daí a afirmar que há racismo institucional no SUS é um passo que as evidências não permitem assegurar. Ademais, os determinantes para as elevadas incidências de AIDS, tuberculose, hipertensão, etc, que se observam em alguns segmentos populacionais dependem muito mais de outros fatores (sociais, econômicos, biológicos e culturais) do que das rotinas de atendimento do SUS.
Como combater o racismo? Consideramos um equívoco a criação de uma política de saúde focalizada na “população negra”, formulada por setores do movimento negro, da comunidade científica e de representantes do governo, com o apoio recente do Ministério da Saúde. Definir uma política separada para a “população negra”, num país em que os cidadãos são pouco afeitos a sistemas rígidos de classificação por cor, exige a produção da diferença, do sistema bicolor, da “raça negra”.
Assim, agravos são transformados em doenças “raciais”, como bem ilustra o caso da anemia falciforme. Bancos de dados precários fundamentam políticas de ação afirmativa do Programa Nacional DST-AIDS, em que a AIDS é alçada à condição de mal predominante na “população negra”. Indo além, a medicina popular, indicador preciso do encontro de culturas à brasileira, deveria ser reconhecida pelo SUS como um conjunto de saberes e práticas terapêuticas de matriz africana. Com esta agenda , parcelas do ativismo negro e seus aliados concebem o enfrentamento das mazelas da discriminação social, inclusive propondo um capítulo sobre saúde no projeto de Estatuto da Igualdade Racial, em tramitação no Congresso Nacional.
Não é de hoje que se celebra o reconhecimento de “raças distintas” e são propostas “políticas raciais”, expressões usadas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em suas memórias publicadas este ano. Foi em seu governo que tais ações foram inauguradas, sendo agora expandidas no governo Lula.
Discordamos dessa agenda. O SUS é o resultado de uma luta antiga, da tradição sanitarista não-racialista. O movimento da Reforma Sanitária, calcado no tripé universalidade, integralidade e gratuidade, concebe a saúde como um direito de cidadania. Há um consenso de que a reforma da saúde é um dos mais bem-sucedidos projetos políticos de inclusão dos setores populares. O que falta, de fato, é um amplo e obrigatório debate público sobre políticas de saúde de recorte racial, diferentemente do que ocorre com a atual discussão do projeto de lei sobre cotas raciais nas universidades públicas.
Em contraposição à política pública racializada, ou seja, uma política que define o preconceito racial como o eixo da desigualdade no Brasil, propomos o aperfeiçoamento dos mecanismos das políticas de humanização do SUS. Ao invés de se denunciar o suposto “racismo institucional”, em que atos preconceituosos são atribuídos genericamente a entes institucionais, em detrimento da importância das ações dos atores sociais e políticos, devemos nos opor a todas as formas de discriminação.
O SUS é uma conquista de caráter universalista rumo a um país mais justo e igualitário, como nos ensinou em vida o sanitarista Sergio Arouca.
* Marcos Chor Maio e Simone Monteiro são pesquisadores da Fiocruz. Paulo Henrique A. Rodrigues é professor da Universidade Estácio de Sá
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