A
questão nuclear é econômica
Nota
de 27 de abril da Sociedade Brasileira de Física é
assinada por todos os membros da Diretoria da SBF: Adalberto Fazzio,
presidente; Paulo Murilo Castro de Oliveira, vice-presidente; Lívio
Amaral, secretário geral; Oscar Nassif de Mesquita, secretário;
Eudenilson Lins de Albuquerque, tesoureiro; e Deise Miranda Vianna,
secretária de Ensino. A seguir, a íntegra da nota:
O Brasil possui
reservas consideráveis de urânio, o combustível
de suas usinas nucleares geradoras de energia elétrica, encontrado
na forma de dois isótopos, 238U e 235U, nas proporções
de 99,3% e 0,7%, respectivamente.
O gerador de
energia é justamente o isótopo mais raro, o 235U.
Bombardeado por neutrons térmicos, um destes núcleos
radioativos se quebra em dois, e emite 3 outros neutrons.
Caso um destes
neutrons venha a colidir com outro núcleo de 235U, este também
sofre fissão, emitindo outros 3 neutrons, e assim por diante,
numa reação em cadeia.
No processo
de fissão, além dos 3 neutrons, cada núcleo
também libera energia para o ambiente, que no caso das usinas
é uma caldeira d'água que se transforma em vapor,
faz girar uma turbina, e esta finalmente gera a energia elétrica
desejada.
Na ínfima
proporção de 0,7% que a Natureza nos oferece, é
muito mais provável a colisão de um neutron com um
núcleo inerte de 238U, do que com um segundo núcleo
ativo de 235U.
Nestas condições,
a reação em cadeia não se mantém em
regime contínuo. Para uso em usinas nucleares é necessário
enriquecer a proporção de 235U para uns 5%.
Na situação
extrema, com a proporção de 235U super enriquecida
a 90%, a reação se torna explosiva: é a bomba
atômica. Para ambos os fins, geração de energia
ou fabricação de bomba atômica, o enriquecimento
artificial do urânio natural se faz necessário.
O processo de
enriquecimento de urânio ora adotado no Brasil é a
centrifugação. Coloca-se a substância UF6 em
forma gasosa num cilindro posto a girar em alta velocidade.
As moléculas
correspondentes ao isótopo 238U, mais pesado, tendem a se
posicionar na periferia do cilindro girante. Consequentemente, na
região central do cilindro, próxima ao eixo, aumenta
a proporção do isótopo de interesse 235U, digamos
de 0,7% para 0,8%.
Separa-se o
gás concentrado nesta região central, já parcialmente
enriquecido, e com ele repete-se o processo centrífugo aumentando
a proporção, digamos, para 0,9%, e assim por diante.
Neste rítmo, depois de uma meia centena de ciclos, chega-se
à proporção desejada de 5%.
No entanto,
gasta-se energia elétrica para fazer girar o cilindro. É
necessário otimizar este processo de centrifugação,
sob pena de se gastar mais energia elétrica do que aquela
que se vai gerar com o produto final.
Esta otimização
envolve aumentar a velocidade de giro, diminuir o atrito nos mancais,
com tecnologias sofisticadas que são mantidas em segredo
pelos países que as detêm. Quanto mais eficiente for
esta otimização, mais barato será o combustível
produzido.
Trata-se, portanto,
de uma questão econômica.
Depois de décadas
sendo obrigado a importar o combustível para suas usinas,
o Brasil desenvolveu por conta própria uma tal tecnologia,
possivelmente mais eficiente que as desenvolvidas em outros países,
o que pode nos colocar numa confortável situação
de independência frente à provável necessidade
futura do uso mais intenso de energia elétrica gerada por
usinas nucleares.
Seguindo o exemplo
de outros países, esta tecnologia brasileira está
sendo mantida em segredo. Esta prática de manter secretos
detalhes específicos de processos de produção
é adotada principalmente pelos países do primeiro
mundo, em qualquer campo onde avanços tecnológicos
geram vantagens comerciais, não apenas no caso nuclear.
O mesmo processo
de centrifugação, otimizado de forma eficiente ou
não, pode ser utilizado para enriquecer a proporção
de urânio 235U até 90%, por aqueles que desejarem produzir
a bomba.
Basta repetir
o ciclo de centrifugação milhares de vezes. Neste
caso, porém, questões econômicas relacionadas
com o custo do processo são evidentemente menos relevantes.
As inspeções
na fábrica brasileira de combustível nuclear, por
parte da Agência Internacional de Energia Atômica, têm
o objetivo exclusivo de evitar a produção de bombas
atômicas, nenhuma relação com a produção
de energia elétrica.
São inspeções
de rotina, idênticas às que são feitas nos demais
países produtores, seguindo tratados internacionais.
Duas questões
naturalmente aparecem no contexto destas inspeções:
1) É
possível usar a mesma tecnologia das centrífugas brasileiras
para enriquecer urânio a 90%?
2) Como funcionam
estas centrífugas?
Conforme discutido
acima, a resposta à primeira pergunta é positiva,
válida para a tecnologia brasileira ou qualquer outra, eficiente
ou não.
Qualquer centrífuga
simples, do tipo usado corriqueiramente para separar resíduos
em geral, pode ser usada para este fim, desde que se tenha acesso
ao urânio natural, à energia elétrica suficiente
para a operação, e muita paciência.
Uma das bombas
lançadas no Japão em 1945 foi alimentada por urânio
enriquecido de forma muito menos eficiente que a centrifugação,
num esforço conjunto de vários laboratórios,
cada um produzindo uma pequena fração do necessário,
em paralelo.
Hoje, um suposto
grupo terrorista organizado poderia adotar a mesma estratégia
americana de 60 anos atrás.
Meia hora de
processamento nas várias centrífugas que enriquecem
urânio em cada um dos países detentores desta tecnologia,
EUA, Inglaterra, Rússia, Israel, França, Alemanha,
Holanda, Japão, África do Sul, China, Índia,
Paquistão, e agora Irã, Coréia do Norte e Brasil,
produziria a quantidade necessária para uma bomba.
Outra estratégia
seria concentrar a produção num destes países.
A resposta à
segunda pergunta não guarda nenhuma relação
com o problema armamentista: desde que haja centrífugas capazes
de enriquecer urânio, independente de como funcionam ou de
sua eficiência, a produção da bomba é
possível.
Aos inspetores
da citada Agência Internacional foi permitido o acesso simultâneo
à matéria prima da fábrica brasileira, o urânio
natural entrando na linha de processamento, e ao produto final,
o urânio enriquecido na proporção de 5% saindo
pelo outro lado.
Assim, eles
já conhecem a resposta positiva à primeira pergunta,
que é tudo que lhes compete. Não lhes foi permitido
o acesso ao funcionamento específico das centrífugas,
portanto lhes foi negada a resposta à segunda pergunta, que
não lhes compete.
Ademais, o pretendido
acesso irrestrito ao funcionamento da aparelhagem não impediria
seu uso indevido para o super enriquecimento, fora da vista dos
inspetores.
Há, sim,
um problema a ser resolvido: como assegurar que as centrífugas
brasileiras, ou quaisquer outras, serão usadas apenas para
produzir urânio enriquecido na proporção de
5%, o das usinas, e não os 90% da bomba? Este é, sem
dúvida, um problema grave, importante para a humanidade como
um todo, cuja solução não é trivial.
É responsabilidade
perene de toda a nação brasileira, independente de
qualquer governo, acompanhar o andamento deste problema. Quanto
mais intenso for este acompanhamento por parte da sociedade, menor
será o risco.
Esta responsabilidade
também se aplica naturalmente a todas as nações
do planeta. Desvendar a tecnologia específica das centrífugas
usadas no enriquecimento de urânio, no entanto, não
contribui de forma alguma para a solução do problema,
desejada por todos.'
Leitora comenta
polêmica sobre enriquecimento do Urânio
Wilma S. Bastos,
do Instituto de Engenharia Nuclear, sustenta que o problema não
é de segredo científico, nem se o país vai
fabricar ou não armas nucleares, mas trata-se do direito
de salvaguardar uma tecnologia
A propósito
da pressão que o país vem sofrendo pela cobrança
da assinatura do Protocolo Adicional do Tratado de Não-Proliferação
Nuclear (TNP) cabe, mais uma vez, argumentar que o Brasil é
o quarto maior produtor de Urânio no mundo, considerando apenas
as jazidas já prospectadas.
O país
detém hoje uma tecnologia avançada de enriquecimento
de urânio, conseguida a duras penas. Com ela, obtém
um enriquecimento a 5% a um custo menor do que o produzido pelos
concorrentes americanos. Além de se tornar independente nessa
área, o Brasil caminha para ser um provável competidor
no fornecimento desse insumo no mercado internacional.
A assinatura
do dito protocolo não só trata da aceitação
de uma verdadeira espionagem industrial, mas certamente condicionaria
o país a ser apenas mais um comprador do urânio enriquecido
nos EUA, ou no Canadá, por exemplo, abdicando de vez de sua
soberania nesse setor.
O problema não
é de segredo científico, nem se o país vai
fabricar ou não armas nucleares, mas trata-se do direito
de salvaguardar uma tecnologia.
Na verdade,
o que está realmente em jogo são interesses comerciais
e a política vigorosa de subjugar a América Latina
como apenas uma área de consumo e não de produção
competitiva.
|