Não é esse privilégio todo

Estamos em plena safra de mais uma campanha de satanização dos servidores públicos. A lavoura não é nada nova e, nos últimos anos, a área plantada da desqualificação dos servidores registrou aumento significativo. Principalmente a partir dos anos 90, quando tiveram início as tentativas conhecidas de desmonte do Estado, o solo pátrio tem sido mãe gentil das difamações mais primitivas.
Primeiro para vaselinar as privatizações e, desde então, para fazer passar a reforma previdenciária, valeu e está valendo quase tudo para transformar servidores nos grandes vilões das ineficiências nacionais. Eles não são santos, alguns estão mais sujos do que pau de galinheiro, mas devagar com o andor. Há muita gente com vocação pública no serviço público. E, se não existissem, teriam de ser inventados. Não há nação digna do nome sem profissionais de elite, com vocação pública, em todas as carreiras de Estado.
Separar o joio do trigo e ressaltar o joio ou, mais primitivo ainda, enfiar todos os gatos no mesmo saco são técnicas óbvias e rasas, nem sempre eficazes, mas largamente empregadas nesses casos. O resultado, além da disseminação da idéia boba de que o Estado é desnecessário, é a comprovação de que nosso nível de escolaridade ainda deixa muito a desejar.
Se já fosse um pouco melhor, seria mais difícil enrolar os cidadãos. Um exemplo é o “estudo” sobre a remuneração média dos servidores públicos, que, segundo os jornais do fim de semana, está “nas mãos” do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O levantamento conclui que, na média dos salários pagos, o governo federal é o melhor empregador do País. Em resumo, o rendimento médio anual dos servidores federais é de exatíssimos R$ 34.814,00 (R$ 2.678,00 por mês) contra uma média nacional de R$ 5.043,00 (R$ 387,90 mensais). Na média do funcionalismo público brasileiro, a média salarial alcança R$ 16,6 mil anuais (R$ 1.276,93/mês). Ainda de acordo com o documento enviado a Lula, a categoria mais bem remunerada, no setor privado, são os empregados de instituições financeiras, com salários médios anuais de R$ 33.800,00.
Visto assim do alto fica parecendo que o servidor público, genericamente, é um privilegiado num país de coitadinhos. Pode até ser e, certamente, um grupo deles é mesmo. Mas, nada além disso é possível concluir do “estudo” enviado a Lula. Afinal, todo o cuidado é pouco com argumentos baseados em médias. Numa boa parte dos casos, médias são usadas para vender gato por lebre.
Quem toma a temperatura de um cidadão com os pés no freezer, a menos 20º C, e a cabeça numa fornalha, a 92º C positivos, está diante de alguém mortinho da silva, mas com uma temperatura média ideal de 36ºC. Só isso já mostra o ridículo das médias aritméticas simples apresentadas sem as devidas precauções. Por exemplo: o salário médio de um grupo de 110 pessoas, entre as quais 100 ganham o mínimo de R$ 240 e 10 recebem 100 vezes mais, ou seja, R$ 24 mil, é de R$ 2.400 – dez vezes mais do que o ganho de 90% da amostra.
Com as devidas desculpas pela digressão “técnica”, deve-se lembrar que médias aritméticas não podem andar desacompanhadas do desvio padrão, sob o risco de expressarem fraudes. O desvio padrão, expresso pela raiz quadrada da variância da amostra, é a medida da dispersão dos “eventos” (os dados levantados, no caso o salário de cada servidor público) em torno da média. Quanto maior o desvio padrão, menos aquela dada média explicará o conjunto de dados que serve de base para seu cálculo.
O desvio padrão da média salarial dos servidores públicos, como, de resto, o da média de renda da população brasileira, é gigantesco. Obviamente, ele reflete a péssima distribuição de renda, tanto na sociedade brasileira quanto no grupo dos servidores públicos. Existe, sem dúvida, uma turma de marajás – alguns de altíssimo calibre. Mas o grosso da remuneração dos servidores não foge ao padrão do mercado de trabalho brasileiro, sobretudo quando se faz a comparação corretamente, cotejando carreiras, especializações e experiência profissionais.
Em maio deste ano, segundo dados do ministério do Planejamento, dois terços dos servidores públicos federais da ativa recebiam remuneração mensal (em reais correntes) inferiores a R$ 2.000. Na mesma época, mais de um terço deles recebia por mês menos até R$ 1.300. Pouquinho mais de 10% ganhavam acima de R$ 5.500 mensais. E só 1,7% passava de R$ 8.500.
Não são salários ruins, principalmente quando se sabe que 75% dos trabalhadores brasileiros ganham até R$ 500 mensais. Mas não é a moleza que o “estudo” entregue a Lula quer fazer parecer. (24.Jul.2003)


 

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