Nele abunda a irreverência

Gerald Thomas acabara de oferecer ao público do Teatro Municipal do Rio de Janeiro a sua montagem de “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner – um espetáculo ousado, de rara beleza visual e cênica que, por não ter sido fiel ao original, desagradou aos entendidos e irritou os devotos do compositor alemão. Em lugar de uma literal interpretação, o diretor brasileiro preferiu uma leitura via Freud, submetendo Wagner e sua obra-prima ao que seria a visão do fundador da psicanálise. Em suma, colocou-os no divã.

Isso lhe permitiu uma série de licenças poéticas e autorizou intromissões de elementos estranhos na velha história de amor e morte de Tristão e Isolda. Com o palco dividido em dois planos, separados por uma cortina de névoa bem geraldiana, podia-se acompanhar o desenrolar da ópera na frente, enquanto atrás, numa atmosfera meio onírica, aconteciam cenas de pesadelo e sonho que iam de surubas até desfiles de moda. Era, como ele disse, “o mundo fashion” em que vivemos substituindo a “passion”, um valor fundamental do mundo dos heróis.

Já no primeiro ato, minha amiga psicanalista Glória Leal confessou-se chocada com o tratamento que estava sendo dado ao seu mestre, que aparecia meio patético, jogando cocaína para o alto e caindo de boca, ou melhor, de nariz no pó. Pode-se imaginar o que ela sentiu quando no terceiro ato Freud é mostrado como um maquiador fazendo massagem em modelos que desfilam.

Não entendo de ópera, nem de Wagner, mas entendo um pouco de Gerald Thomas, de sua inquietação e inconformismo, de seu talento transgressor e seu poder de provocação. Ele pertence àquela dinastia que Darcy Ribeiro – ele mesmo um deles – chamava de “iracundos” pela radicalidade criativa e que começa com Gregório de Matos, passa por Oswald Andrade e chega a Hélio Oiticica, Glauber Rocha e José Celso Martinez Correa.

Gerald não escondeu o jogo. Em sua coluna no JB explicou o que pretendia fazer. Confesso que não me choquei com o que vi, talvez pela minha santa ignorância do que estava vendo pela primeira vez. Com 18 óperas encenadas na Europa – Viena, Frankfurt, Munique, Weimar (onde apresentou sua última montagem de Tristão e Isolda, em 1996) – meu amigo não ia se satisfazer em repetir o que já tinha aprontado por lá. Ia tentar algo que provocasse pelo menos um escândalo parecido com o que provocou com “O Navio Fantasma”, sua estréia em 1987, também no Municipal.

Resumo da ópera. No final do espetáculo de quatro horas, já na madrugada de domingo, a resposta à irreverência de Gerald traduziu-se em aplausos aos cantores e à orquestra, e em estridentes vaias a ele, seguidas de sua reação inusitada que, essa sim, surpreendeu até a mim, já acostumado com elas.

No palco, de costas para o público, Gerald desabotoou a calça, inclinou-se para a frente e exibiu o traseiro – pálido, meio magro e pouco expressivo, talvez porque a noite, muito fria, não fosse propícia a tamanho desnudamento. A platéia dividiu-se: não se sabe quantos aplaudiram nem quantos vaiaram, e se faziam uma coisa ou outra por quem mostrava ou pelo que era mostrado, ou seja, se aplaudiam ou vaiavam a bunda ou o dono da bunda por tê-la mostrado. Descobri então que a bunda de Gerald tem cara de bunda.

Uma moça, com aparente conhecimento de causa, comentou que de frente, nas mesmas circunstâncias, ele era muito melhor. Questão de gosto. Eu nada disse porque nada sei. Era a primeira vez que estava sendo apresentado a ele naquela posição e daquele jeito, como também me era desconhecido o outro lado, com o qual ela parecia ter intimidade.

O melhor comentário, porém, foi de Giulia Gam, que ao passar por mim já reclamara da cor e do tecido (lycra) da cueca do amigo. A repórter Anabela Paiva assistiu quando ela cumprimentou o ex-namorado e disse: “Adorei a ópera... Mas cueca verde, Gerald?”. Faço minha as suas palavras. O que adianta todo aquele rigor de só se trajar de preto, se a roupa íntima é verde? E que verde! Tão sem graça quanto a falta de cor da parte mostrada.

 


 

 

 

voltar