Adeus, Haroldo de Campos

Entrevistei Haroldo de Campos na virada de 2001 para 2002, a propósito do lançamento do primeiro dos dois volumes de sua monumental tradução (transcriação, como ele preferia) da “Ilíada”. O poeta, crítico, professor e ensaísta propôs que resolvêssemos tudo por e-mail, com o que concordei - confesso - aliviadíssimo. Se lhe era mais fácil exercitar o rigor e as sutilezas do discurso erudito escrevendo, em vez de falando, para mim o Outlook Express era uma chance de, juntando uma pesquisa aqui, um vago insight acolá, formular perguntas que traduzissem algo além de intimidação.

Sim, Haroldo era aquilo que num dia criativo eu chamei de “intelectual cascudo” - para grande diversão dele. Não admira que a cultura brasileira, mais antiintelectualista a cada semana que passa, o tenha confinado a um escaninho estreito. Como se seu trabalho radical e luminoso, uma declaração de amor incondicional à literatura, só pudesse interessar a meia dúzia de pessoas.

A doença já lhe atazanava a vida na ocasião da entrevista. Com dores por todo o corpo, Haroldo de Campos trabalhava deitado, escrevendo à mão, o que tornava terrivelmente incômoda a consulta a todos os volumes de que necessitava para dar conta da tarefa insana - que no entanto ele levou até o fim, publicando o segundo volume da “Ilíada” este ano, como havia prometido - de fazer Homero falar português.

Sua morte na madrugada do último sábado, aos 73 anos, em São Paulo, me deixou uma sensação de dívida impagável. É que a tal entrevista foi publicada no caderno “Idéias” do Jornal do Brasil com um pedaço faltando. Um pedaço fundamental, em que o mestre, defendendo os princípios da “transcriação” e revelando um dos truques de mágica do seu arsenal, anulava o golpe de uma pergunta mais agressiva (entrevista é esgrima), mas que o editor carente de espaço julgou dispensável.

Talvez estivesse certo o editor. Era material especializado demais, coisa destinada a só despertar o interesse de quem gosta de perscrutar a alma das palavras - meia dúzia de pessoas? Tentando uma quitação póstuma da dívida, reproduzo abaixo, como forma de adeus e homenagem, minha pergunta e a resposta enfim completa de Haroldo de Campos.

P: Os críticos da transcriação alegam que a busca de correspondências formais leva a que se tomem liberdades excessivas com o conteúdo. O belo verso de sua Ilíada "Devora-Povo! Rei dos Dânaos? Rei de nada", um dos ataques verbais de Aquiles a Agamêmnon, seria uma traição e um anacronismo, pois o "nada" não consta do original e os gregos sequer o conceberiam de modo absoluto...

R: A transcriação é uma radical operação desconstrutora que culmina, num segundo tempo, numa reconstrução ou reconfiguração do modo de formar e de significar, ou, numa só expressão, da forma significante do original. Nesse segundo momento, ela pode mesmo ser vista como um caso de hiperfidelidade, não de superfície, ao mero conteúdo, mas no nível micrológico, às mínimas articulações fônicas e semânticas do original, preservando-lhe, assim, a força. Seu oposto é a tradução morigerada, medíocre, que comete o pecado capital de converter um belo poema numa poema apenas sofrível ou definitivamente ruim. No caso do verso 231 do Canto I, a palavra “nada” não tem conotação filosófica, metafísica. Não se trata de “Rei do Nada”, mas, sim, de “rei de nada”, segundo a expressão popular (ele “não é de nada”). Aquiles chama Agamêmnon de “Devora-Povo” (demobóros) e acrescenta que os seus súditos, os que a ele se submetem (os gregos ou Dânaos), só o fazem por ser ele rei de “gente de nada”. No original, se lê: demobóros basileús, epeì outidanoîsin anásseis; literalmente: “rei devora-povo, que reina (do verbo anásso) sobre gente que não vale nada (outidanoîsin)”. Nesta última palavra, o soberbo artífice que é Homero embutiu, paronomasticamente, o termo danoí (designação dos gregos), provocando um reforço semântico no nível conotativo. É óbvio que o tradutor medíocre não atenta para isso, nem dispõe de meios criativos para reconfigurar o relevante trocadilho homérico. Minha solução envolve a projeção de NADA sobre DÂNAos, recuperando assim o jogo verbal.

 

 

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