Basta de guerras infinitas
Emir Sader é sociólogo, professor da USP e Uerj

Toda guerra é deflagrada com a promessa de ser a 'última', a 'definitiva', a que vai instaurar 'de uma vez por todas', a ordem e a justiça no mundo.

Foi assim desde que a cadeia de guerras desatada em 1914 levou o mundo ao predomínio da força sobre a lei, da coerção sobre a legitimidade e à morte da grande maioria de civis nos conflitos bélicos protagonizados por militares.

O atentado de terça-feira em Bagdá e a morte de Sérgio Vieira de Mello, entre outros funcionários da ONU, faz parte desse cenário.

As feridas que ele e seus companheiros lutavam para cicatrizar foram provocadas por mais uma 'última guerra' - esta de caráter 'infinito' - deflagrada contra a opinião pública mundial, contra a ONU, contra a posição do Brasil - do governo e do povo brasileiros, pela aliança entre os governos dos EUA e da Grã-Bretanha.

O diplomata brasileiro aceitou mais essa missão de paz, com todos os riscos que ela implica, para lutar - como ele declarou sistematicamente - contra a ocupação do Iraque e pela devolução do poder ao povo daquele país.

Diante dos olhos desesperados dos iraquianos que resistem à ocupação do seu país, a profanação dos seus símbolos mais sagrados, das riquezas do seu país, tudo o que chega do Ocidente é amalgamado como 'inimigo'.

Com dificuldades para atacar instalações norte-americanas e britânicas - caso tenha sido efetivamente realizado por iraquianos - atacaram o que aparece aos seus olhos como conivente com a guerra brutal desatada contra o seu país e o seu povo, cometendo um ato brutal e covarde.

Nada justifica esse ato. Ele apenas aprofunda a espiral do terror que recaiu sobre o povo iraquiano, da mesma forma que as respostas violentas dos palestinos - por mais que compreendamos os sentimentos que as movem - apenas multiplicam um caminho de sofrimento e de impasses políticos.

O Brasil deve, envolvido como está pela morte de um dos seus mais brilhantes diplomatas, assumir as propostas que Sérgio Vieira de Mello fez, a começar pela definição de uma data próxima para a saída das tropas norte-americanas e britânicas do Iraque, pela eleição de um governo democrático, representativo de todos os setores do país.

E deve, além disso, exigir que a ONU assuma realmente todas as responsabilidades políticas pelo futuro do Iraque, para fazer jus ao sacrifício de um diplomata brasileiro, destemido, digno, da melhor tradição da política externa que o Brasil volta a assumir neste governo.

Até porque a segurança da ONU está nas mãos das tropas de ocupação, que se revelam incapazes de lhes dar proteção, acrescentando mais um argumento para que se ponham em prática as posições de Sérgio Vieira de Mello.

É chegada a hora de a comunidade internacional assumir as responsabilidades sobre a ordem mundial, entregue hoje às forças belicistas, que, de um lado e de outro, impõem espirais de terror, na qual lucram os que acreditam que o poder se apóia na força e na violência, os que fabricam e lucram com a indústria de armas, os que canalizam esse dinheiro ganho de forma suja para paraísos fiscais, onde se misturam com o dinheiro do narcotráfico.

Outro mundo é possível, um mundo sem guerras é possível, contanto que os conflitos sejam resolvidos por negociações pacíficas e justas - como aquelas que Sérgio Vieira de Mello se propunha no Iraque e ajudou a fazer triunfar no Timor Leste.

Que esse trágico episódio comprometa definitivamente o Brasil a atuar no plano internacional em função das soluções pacíficas e justas, contra o belicismo imperial, contra o terror das guerras e da violência, por um mundo solidário.

Chega de guerras finitas ou 'infinitas', chega de 'direito unilateral de desatar guerras preventivas', chega dos lucros milionários das indústrias bélicas, chega de unilateralismo, domínios imperiais, intolerância, terror, violência.

O Brasil está definitivamente comprometido a lutar para superar esse mundo, luta na qual morreu Sérgio Vieira de Mello. Somente assim ele não terá morrido em vão.
(Jornal do Brasil, 20/8)

 

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