Estudo questiona datação por sedimentos

A ilusão de que as camadas de sedimento depositadas por um rio são um registro fiel da marcha de eras passadas acaba de ir por água abaixo.

Pesquisadores americanos e franceses que estudam os rios amazônicos Beni e Mamoré descobriram que alguns anos respondem por montanhas de sedimento, enquanto outros simplesmente não deixam rastros.

O Mamoré corre na fronteira da Bolívia com o Brasil e segue território brasileiro adentro, onde é um dos principais afluentes do rio Madeira.

Embora as conclusões tenham sido tiradas com base apenas na porção boliviana do rio, os pesquisadores afirmam que o mesmo deve estar acontecendo em outras bacias fluviais do mundo.

'Acho que esse é o caso, e alguns dados preliminares que conseguimos na Califórnia sugerem isso', afirmou por telefone o geomorfólogo Rolf Aalto, 34, da Universidade de Washington, em Seattle (costa noroeste dos EUA).

Aalto, que criou até um rodapé de e-mail especial para comemorar o achado ('Todos os rios correm para o mar... episodicamente!'), é o primeiro autor do estudo que sai hoje na revista científica britânica 'Nature' (http://www.nature.com). 'Pretendemos investigar o curso inferior do Madeira, com colegas no Brasil, para verificar se esse padrão se mantém', afirma.

Aalto explica que o estudo do Beni e do Mamoré é revelador porque, ao contrário da maioria dos grandes rios do hemisfério Norte, eles quase não foram modificados pela ação humana.

'Nenhum dos grandes rios dos EUA está nas mesmas condições', diz ele.

'Além disso, o Madeira, por exemplo, é o tributário do Amazonas que mais carrega sedimentos', diz a hidróloga francesa Laurence Maurice-Bourgoin, 38, pesquisadora do IRD (Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, na sigla em francês), que também participa do estudo. Ela está no Brasil e atua como professora-associada da Universidade de Brasília (UnB).

Segundo Maurice-Bourgoin, o trabalho da equipe consistiu em examinar o perfil dos sedimentos depositados pelos rios nas suas margens e nas planícies circundantes com fotografias aéreas e de satélites, além de recolher amostras do material e analisá-las.

Para datar os sedimentos, o grupo usou o método do chumbo-210, que emprega o desaparecimento gradual desse material radioativo para estimar a passagem do tempo.

A vantagem dessa técnica é que essa variante do elemento some muito rápido, o que permite estabelecer o ano exato em que cada camada surgiu.

O resultado fez a equipe coçar a cabeça: em vez de uma deposição gradual e anual, as camadas 'pulavam' períodos, embora uma nova se formasse, em média, de 8 em 8 anos.

Foi só com a correlação de dados climáticos que Aalto e seus colegas conseguiram flagrar a causa do fenômeno.

O vilão, ou melhor, a vilã da inconstância fluvial descoberta pela equipe é La Niña, o fenômeno climático oposto ao El Niño.

Na versão masculina, trata-se de um aquecimento anormal das águas superficiais do Pacífico na costa oeste da América do Sul, na altura do Peru, na época do Natal -daí o nome, que significa 'o menino' em espanhol. Na feminina, um resfriamento anormal.

Ao contrário de sua contraparte, La Niña traz grandes chuvas aos Andes e às cabeceiras dos rios amazônicos. Mas a coisa é ligeiramente mais complexa que a simples equação 'muita chuva é igual a muito sedimento descendo o rio', explica Aalto.

'Não são só grandes chuvas, mas grandes chuvas concentradas em períodos reduzidos, de dois ou três dias', diz o geólogo.

O resultado bagunça de vez os métodos de estimar a passagem do tempo que apostam numa deposição contínua de material por parte dos rios.

'Imagine como seria se você se lembrasse de apenas um ano em cada década, e, desse ano, apenas um de cada dez dias', compara Chris Paola, da Universidade de Minnesota, que comentou o trabalho de Aalto e Maurice-Bourgoin para a 'Nature'.

'Se eu fosse um arqueólogo tentando datar algum evento com base na estratigrafia, eu certamente teria de tomar cuidado com isso', diz Aalto.

A deposição de sedimentos também influi nas cheias dos rios da região, um processo que poderia ser um tanto perturbado caso a mudança climática altere La Niña:

'Isso teria um impacto nas fortes cheias, principalmente na região mais próxima dos Andes, que recebe 60% desses sedimentos', afirma Maurice-Bourgoin.

De acordo com ela, o trabalho também ajuda a mostrar como o mercúrio usado na mineração andina tem sido carregado para a bacia amazônia -um processo que se intensificou nos últimos anos.
(Reinaldo José Lopes, 2/10)


 

 

 

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