Perplexidades econômicas

28.Ago.2003 | Os economistas – os economistas liberais latino-americanos, para ser mais exato – estão perplexos. Mais ou menos duas décadas depois da aplicação dedicada do receituário de reformas que aviaram, a América Latina expõe variadas instabilidades macroeconômicas, por trás do êxito da estabilidade dos preços.

A relação entre a dívida pública líquida e o PIB mantém-se numa zona de turbulência, assim como os passivos externos e o seu pesadíssimo serviço emolduram um quadro de fragilidades econômicas. São núcleos óbvios de instabilidades fiscais e cambiais, mas isso não é o pior. O pior é que, para onde se olha, vê-se um quadro desolador de pobreza e concentração de renda.

Do ponto de vista do bem-estar social, se é que é possível, a situação, nesses quase 20 anos, andou para trás. Relatório da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), divulgado esta semana, aponta a existência de 220 milhões de latino-americanos pobres, ainda assim em posição mais confortável do que os 55 milhões de indigentes da região. Um exército de desvalidos maior do que o existente no início dos anos 90.

Em resumo, entre pobres (43,4% do total dos habitantes da região) e indigentes (18,8% do total), pouco menos de dois entre cada três latino-americanos, no ano passado, viviam em situação de desconforto – ou extremo desconforto – social. E as projeções para 2003 são de agravamento dos índices de pobreza. “Nessas condições”, segundo o informe da Cepal, “a maioria dos países mostra um avanço insuficiente para alcançar a meta estabelecida pelas Nações Unidas de redução da pobreza pela metade até 2015.”

Deu nisso bater a massa do bolo econômico com pouca farinha e nenhum fermento. O confeito que saiu do forno neoliberal ficou mirrado por fora e solado por dentro. Assim, diante da força negativa dos fatos, encontrar caminhos alternativos para o crescimento passou a ser um item urgente da nova agenda econômica na América Latina. A corrida da turma que desenhou o desastre na direção dos novos tempos, no entanto, tem sido atrapalhada.

Para começar, é curioso, mas não surpreendente, verificar que restam cada vez menos defensores de um aprofundamento liberalizante como saída dessa tendência sombria ao empobrecimento. Sobraram poucos xiitas neoliberais, mas é grande a fila dos novos desesperados pelo crescimento. Eles se agarram a uma nova sigla – “GGG”, de “get growth going” (crescer de forma sustentada) – para purgar, sem dar muito o braço a torcer, mas ainda sem explicar muito bem como sair da armadilha, a pobreza econômica e a deterioração social que suas teorias ajudaram a moldar.

Não por acaso, proliferam, no momento, os seminários e as palestras em torno das questões que interligam – ou contrapõem – crescimento e estabilidade. É aqui que as perplexidades econômicas mostram a cara. Os arautos neoliberais daquelas virtudes que não se concretizaram estão ativos no esforço de reacomodação das idéias. Fazem, com mais ou com menos desenvoltura, dependendo da personalidade de cada um, o diagnóstico do erro, mas, como têm dificuldades em se desvencilhar dos velhos conceitos, ainda apresentam mais pontos de interrogação do que soluções.

No discurso perplexo, o câmbio é um caso típico. Fixo e valorizado no passado recente, ele serviu para ancorar a estabilidade dos preços, embora às custas da vulnerabilidade fiscal e externa, mas agora deve dar lugar ao “câmbio competitivo”. Ou seja, a uma taxa cambial mais desvalorizada, que impulsione as exportações e ajude a formar saldos comerciais robustos, reforçando as reservas em dólares. Só que o câmbio deve ser “competitivo” sem controles ou intervenções ou qualquer tipo de ação do governo no mercado...Entendeu? Nem eu.

Tem também o investimento direto estrangeiro. Sabe por que secou? Simples, segundo a explicação dos neo-convertidos ao crescimento: o Brasil não tem um marco regulatório adequado, o sistema legal é incerto, a corrupção campeia e o direito de propriedade não é bem definido e respeitado. Compreendeu? OK que tudo isso está longe do ideal por aqui e que seria muito bom que melhorasse nesse campo. Mas...e a China? Não é uma ditadura de partido único – e ainda por cima comunista? Como então lidera disparada a lista dos países que mais captam investimentos diretos entre as economias emergentes?

Política industrial, na versão GGG, é outra história meio atrapalhada. Passaram um creme na velha urticária provocada pelas ações verticais de governo, visando empurrar setores específicos e já não é proibido falar em falhas de mercado. Mas a conversa tem de ser em voz baixa. Nada de escolher setores, adensar cadeias produtivas, definir onde estimular a inovação nem induzir mercados. Difícil entender? Ora, você não entende nada de crescimento econômico e de redução da pobreza.
jpkupfer@nominimo.ibest.com.br

Enquanto o sinal não abre

Xico Vargas

D. Santa e família: "fui à luta e venci"
À margem dos programas oficiais que prometem socorrer multidões de sem-trabalho – e debaixo de forte e organizada concorrência – cresceu no Rio de Janeiro uma atividade que promete fechar o oitavo mês do governo Lula com movimento de mais de um milhão de reais mensais. Sem grande investimento ou mistério, como costumam ser os frutos da criatividade do pobre, a venda de sacos de algodão usados principalmente como panos de chão alastrou-se pelos sinais de trânsito da cidade. Mais na Zona Sul e na Barra da Tijuca. Atendem a consumidores de extrações tão diversas quanto podem ser donas de casa, flanelinhas e postos de gasolina que lavam automóveis.

Um sucesso, garante Marília Sato, que compra no mínimo 20 de cada vez, para dividir com as filhas. “São ótimos, porque são macios e não soltam pêlos”, testemunha. Não soltar pêlos, segundo Marília, é o segredo que indústrias como Orniex, Bom-Bril, Limpanno e outras tantas ainda não desvendaram para oferecer nas flanelas e panos que põem à venda nos supermercados. Não falou, mas talvez o preço pese também na decisão. O saco de algodão custa R$ 1 a unidade, enquanto os panos industrializados saem por algo entre R$ 2 e R$ 5. Não é nada, não é nada, para quem compra 20 sobra um belo troco. Compradores como Marília integram o elenco VIP, que faz a alegria das mais de 500 pessoas que já se ocupam diretamente do negócio. Família inteiras vivem hoje da venda de sacos nos sinais.

Dona Santa, sete filhos, 62 anos e o pé quebrado semana passada por ter pisado num buraco, está no ramo há 10. Até parar nos sinais da avenida das Américas vendeu muito saco pelos prédios da cidade. Foi assim que criou quatro moças e três rapazes, comprou o terreno e construiu a casa onde mora, na Vila Autódromo, à margem da lagoa de Jacarepaguá. Já vai longe no tempo, mas ainda é nítida para ela a lembrança de quando morava numa casa de 17 cômodos e tinha dois carros parados na porta. Perdeu tudo. Osmar, o marido, passou o patrimônio da família nos cobres e carregou todos para Vitória. “Botou na cabeça que a gente ia ficar rico fazendo negócios por lá”. Se negócios fez, deles ninguém soube. Osmar enganchou-se num rabo-de-saia e tomou o rumo de Belo Horizonte. Dona Santa não ficou nem com o do ônibus. Fábio Júnior (isso, homenagem àquele mesmo), o filho mais moço, tinha três meses. Semana passada fez 22 anos.

Por quê não casou de novo? “Não, de jeito nenhum. Não podia casar porque não fiquei viúva. Fiquei separada e a religião não permite”. Sente saudade? “Não. Da vida que eu tive, não. Tive saudade dele, mas agora não tenho mais. Eu queria ele. Não tendo, peguei meus filhos e fui a luta. Venci”. Venceu, mesmo. Vendeu doces em Vitória e foi camelô até arrecadar algum que lhe permitisse voltar para o Rio e comprar um lugar para morar. Não conseguiu muito, mas deu para botar um teto sobre a cabeça na favela que havia às margens do canal de Marapendi. Desalojada pela prefeitura, ergueu a casa atual em torno da qual instalaram-se os filhos com as famílias.

Dona Santa é uma das primeiras moradoras da Vila Autódromo, extenso aglomerado de casas que, nos últimos anos, vem abandonando a paisagem degenerada das favelas, com os barracos sendo substituídos por construções que apontam para faixa de renda equivalente à classe média baixa. É ali que esta carioca de 1,50 metro, cara de nordestina e faca nos dentes se diverte colecionando netos, que conta nos dedos: Felipe, Tiago, Bruno, Douglas, Gabriel (homenagem ao anjo), Diogo, Tárik, Thales, David, Lali, Aka (nome bíblico), Esther, Carlos, Alícia “e dois que estão a caminho”, comemora com uma risada. Todos em idade escolar estão matriculados. A casa é pequena, mas dona Santa não precisa de muito espaço para seu matriarcado. Comanda a principal atividade econômica da família, uma horta (feijão carioquinha, batata, mandioca, salsa e cebolinha) na margem da lagoa e os churrascos dominicais que os reúnem.

“Quando eu vim para cá não tinha nada, só o jacaré. Quando eu abria a porta e ele estava no sol, sumia na lagoa redemoinhando a água toda”, solta o riso com a lembrança dos jacarés, que hoje compõem família tão numerosa quanto à sua e divertem adultos e crianças com o farfalhar que provocam na fuga por entre a vegetação das margens. Da lagoa que a família conheceu resta apenas o volume de água hoje escura, barrenta. “Ficou tudo muito poluído, não presta mais. Agora ainda tem tilápia e tainha, mas a gente pescava muito por aqui”, lembra Paulo com saudade das águas limpas de onde tirava robalos para os almoços de domingo. O cardápio mudou, mas não a disposição. Principalmente porque dona Santa não deixa Ninguém parado. “Um dos meninos só fazia beber – e a nora também – mas agora pararam. Os dois estão trabalhando”, fala com firmeza que acredita ter descoberto na igreja Pentecostal.

Dois dos homens são pedreiros, Fábio Jr. trabalha na padaria da vila, o quarto, Paulo, 39 anos, e as mulheres vendem sacos. Pelas mãos da família passam mais de 3 mil sacos por mês, além de flanelas e panos de prato. Mas dona Santa acha que, ao descobrir o filão dos sinais de trânsito há quase dois anos, começou a perder terreno. “Naquele tempo eu vendia mais de 200 sacos por dia. Agora, tá cheio de gente vendendo”. Paulo, que adotou como ponto um sinal perto do shopping Infobarra vende 600 sacos por semana. Lucimar, 34, a mais velha das filhas, garante que nas duas primeiras semanas do mês vende em torno de 100 sacos por dia. “Depois cai um pouco, o dinheiro do pessoal diminui”, avalia.

Casada com Antônio Gerônimo, 40, mecânico de automóveis, Lucimar, como quase todos os seus colegas de atividade, padece da falta de planejamento e de capital de giro. Só por isso peregrina diariamente até o bairro da Saúde, do outro lado da cidade, com pouco mais de R$ 100 na bolsa em busca de mercadoria. Depois de sacudir por quase duas horas num ônibus chega ao depósito, uma construção antiga na rua Pedro Ernesto, 85. É ali que há oito anos José Aguiar, 50, administra o velho negócio dos sacos de algodão que, com a ajuda de dona Santa, cada vez mais invade as casas das famílias. Aguiar também vende panos de prato do mesmo algodão e sacos mais encorpados. Na média, entrega aos vendedores por 70 centavos a unidade revendida nos sinais por R$ 1, lucro de 35%, portanto. Nada mau. Há mais alguns depósitos de sacos na Saúde. O de Aguiar dá emprego a dois jovens e permitiu que seu filho cursasse engenharia mecânica. “É um mercado bom”, ele garante. “Cresceu muito”.

Realmente, um crescimento extraordinário. Há 50 anos eram as avós que compravam nas padarias sacos de algodão que tinham embalado a farinha de trigo fornecida pelos engenhos. O açúcar, por muito tempo, também viajou em sacos de algodão branco. Conta a lenda que, para desespero dos plantadores de algodão, essa regra quase foi abolida no fim da Segunda Guerra com o surgimento do plástico. A história seria assim: tecidos sintéticos, no vestuário, e sacos de polietileno, no transporte do açúcar e da farinha, começaram a tomar o lugar do algodão que o Brasil exportava. Apertados, plantadores e políticos, como sempre, correram para o governo. Arrancaram de Getúlio Vargas uma canetada que obrigou os engenhos de açúcar e de farinha a deixar tudo como estava. Mais ou menos como fez o presidente Lula, há três meses, para os usineiros de cana-de-açúcar que estavam afogados em 55 milhões de litros de álcool. Gastaram-se décadas até que o custo menor do polietileno vencesse. Muito mais tempo do que precisou o algodão para recuperar prestígio como tecido.

A indústria se modernizou o algodão ganhou qualidade e os velhos teares foram passados adiante. Os sacos hoje saem de pequenas indústrias, quase todas instaladas na Paraíba. “No Rio de Janeiro a gente movimenta bem mais de um milhão de sacos por mês”, estima Aguiar, considerando o movimento dos demais depósitos da cidade. “Quanto a gente ganha? Eu nem sei, porque a gente ganha num dia e come no outro”, desconversa dona Santa. “Mas dá para ver que está todo mundo alimentado e com saúde”, exulta, olhando a algazarra de filhos e netos na frente de casa.


xicovargas@nominimo.ibest.com.br

 


 

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