O mosquito

A trajetória do Aedes aegypti: uma história anterior à dengue

As epidemias de dengue que aconteceram no Brasil desde 1986 tornaram o mosquito Aedes aegypti conhecido em todo o país. Até mesmo para leigos, hoje é fácil reconhecê-lo pelas listras brancas nas patas. Sua história no país, entretanto, é bem mais antiga. A mesma espécie que transmite a dengue é responsável pela transmissão da febre amarela, doença hoje controlada no meio urbano, mas que fez incontáveis mortes até as primeiras décadas do
século XX.

As teorias mais aceitas indicam que o Aedes aegypti é originário da África e teria se disseminado para a Ásia e o continente americano por embarcações que aportaram no Brasil para o tráfico de escravos. “Por conta da febre amarela de transmissão urbana, a partir da década de 1930 uma grande campanha para a erradicação do Aedes aegypti foi deflagrada no Brasil e em outros países do continente com apoio da Organização Pan-Americana de Saúde e da Fundação Rockefeller”, conta Ricardo Lourenço, entomologista do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e coordenador da rede de pesquisa em dengue do Programa de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde Pública (PDTSP) da Fiocruz.

Alcançada na década de 1950, a erradicação do Aedes aegypti já não seria uma realidade duas décadas mais tarde. “Pesquisas realizadas naquele momento mostram que apenas as pessoas acima dos 50 anos apresentavam anticorpos para a dengue, o que não era verificado entre os mais jovens”, o pesquisador esclarece. “Este dado sugere que houve um período de ausência de casos de dengue entre a população brasileira ”, conclui.

Sobre o retorno do mosquito ao Brasil após a erradicação, o entomolgista observa que a erradicação não recobriu a totalidade do continente americano. Assim, o Aedes aegypti permaneceu em áreas como Venezuela, sul dos Estados Unidos, Guianas e Suriname, além de toda a extensão insular que engloba Caribe e Cuba. A hipótese mais provável é de que tenha acontecido a chamada dispersão passiva dos vetores, através de deslocamentos humanos marítimos ou terrestres.

 

Da infecção à transmissão

Apenas as fêmeas do Aedes aegypti que possuem o vírus da dengue em suas glândulas salivares são capazes de transmitir a doença para o homem. A especificidade das fêmeas como agente vetor é explicada porque a alimentação com sangue é necessária para a maturação dos ovos. Já a alimentação regular de machos e fêmeas é baseada na seiva de plantas. A presença do vírus nas glândulas salivares do vetor acontece após o chamado período de incubação extrínseca, cerca de 12 a 14 dias a partir do momento em que o mosquito picou uma pessoa infectada. Então, o vírus já se multiplicou em diversos tecidos do inseto, desde o intestino às glândulas salivares. Em temperaturas altas, este período de incubação pode ser abreviado.

O vírus da dengue não é nocivo ao Aedes aegypti e, uma vez infectado, o mosquito se torna vetor permanente da infecção. Em alguns casos o vírus se multiplica no ovário e outros tecidos do sistema reprodutor do mosquito. Deste modo, parte dos filhotes de uma fêmea infectada já nasce com o vírus, que pode ser transmitido de forma hereditária através de várias gerações de mosquito. Neste caso, a dengue pode estar circulando entre os mosquitos de forma silenciosa, mesmo que não ocorra o registro de casos entre humanos.

Necessariamente, cada fêmea copula uma única vez e armazena o esperma do macho em estruturas chamadas espermatecas. A partir de então pode realizar diversas posturas, com cerca de 200 ovos cada uma. O entomologista ressalta que, ao contrário de muitas espécies de mosquitos, uma fêmea do Aedes aegypti espalha seus ovos em diversos criadouros, de uma mesma casa ou não. Outro fato interessante é que os ovos não são depositados diretamente na água, mas na parede do foco alguns milímetros acima da superfície.

Quando entram em contato com a água, os ovos levam de 10 a 30 minutos para eclodir, dependendo das condições de temperatura. Os ovos podem resistir bastante tempo sem contato com a água. “No espaço de três meses quase todos os ovos sobrevivem sem contato com a água", o pesquisador observa. "A partir deste ponto, a taxa de eclosão cai, sobretudo em climas secos." Em um período que varia entre cinco e sete dias, a larva passa por diversas etapas de metamorfose até dar origem a um novo mosquito. Para que a larva cresça é preciso haver matéria orgânica na água, utilizada como alimento. O ciclo de vida do Aedes aegypti dura cerca de 30 dias, tendo os machos um ciclo mais breve que as fêmeas.

O entomologista explica que o Aedes aegypti não é o vetor exclusivo da dengue. “Na natureza, na maior parte do mundo, o vetor da dengue é o Aedes aegypti, mas, em algumas áreas, sobretudo no sudeste da Ásia, existe um vetor secundário, chamado Aedes albopictus”, sintetiza. Esse mosquito também invadiu o Brasil, provavelmente na segunda metade dos anos 1980. Porém ainda não foi comprovada a infecção natural do Aedes albopictus em nosso país. “Não existem casos de infecção natural no Brasil, mas em testes experimentais realizados no IOC verificamos que ele pode ser infectado e é capaz de transmitir a dengue”, o pesquisador ressalta. Ao contrário do Aedes aegypti, que possui hábitos urbanos, o Aedes albopictus vive em bairros com maior cobertura vegetal.

 

Cidadania como estratégia para o controle

Pesquisas realizadas pelo IOC em diversos bairros cariocas mostram que o índice de infestação do Aedes aegypti é inversamente proporcional ao nível de cobertura vegetal da localidade, o que reafirma o caráter urbano e doméstico do mosquito. “O Aedes aegypti não existe na floresta, ele só existe onde há presença humana”, o entomologista ressalta. “O fato do Aedes aegypti ser doméstico não é negativo para o controle. Pelo contrário, isto facilita a possibilidade de controle, já que as medidas necessárias estão ao alcance de todos. É muito mais difícil controlar a população de uma espécie de mosquito que, por exemplo, habita matas onde existem inúmeros criadouros naturais. A chave para o controle da doença é manter o mosquito em densidade muito baixa”, sintetiza.

As orientações para eliminar os focos da doença são simples, mas o especialista chama atenção para alguns detalhes. “Quando a pessoa coloca areia nos pratos das plantas, é preciso usar quantidade suficiente para preencher o prato”, explica. “Caso contrário, quando o nível da água fica acima da areia, o mosquito pode se desenvolver na camada de água.” Outra informação importante é que não basta cobrir os reservatórios de água: é preciso vedar qualquer fresta que permita a passagem do mosquito.

“No Rio de Janeiro existe um obstáculo social para o controle do vetor da dengue”, o pesquisador pondera. “Por conta da questão da violência, muitas vezes a população não se sente segura para permitir a entrada dos mata-mosquitos em suas residências e, de forma inversa, existem muitas áreas onde os agentes não se sentem seguros para realizar o trabalho de controle. Mas todos os empecilhos que esta dinâmica social impõe podem ser tranqüilamente anulados pela conscientização da população quanto à sua capacidade de intervenção. O passo decisivo é a atitude de cada um em eliminar os criadouros de mosquito.”

Por Raquel Aguiar
25/01/06

 

 

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