Portuguese English Spanish
Interface
Adjust the interface to make it easier to use for different conditions.
This renders the document in high contrast mode.
This renders the document as white on black
This can help those with trouble processing rapid screen movements.
This loads a font easier to read for people with dyslexia.

vw_cabecalho_novo

Busca Avançada
Você está aqui: Notícias » Bastidores da ciência sob análise

Bastidores da ciência sob análise

Mudança no perfil do cientista, assédio no universo da ciência e papel da imprensa na divulgação científica estiveram em pauta na retomada das atividades do Núcleo de Estudos Avançados do IOC
Por Lucas Rocha e Kadu Cayres01/09/2017 - Atualizado em 09/06/2021

Três questões com grande apelo na atualidade − ética, assédio e boas práticas na produção científica − marcaram a sessão de retomada das atividades do Núcleo de Estudos Avançados (NEA) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), iniciativa criada há mais de 15 anos pelo pesquisador Renato Cordeiro, então diretor do Instituto e atual coordenador do Núcleo [confira entrevista com o coordenador]. Realizado na manhã desta sexta-feira (01/09), o encontro teve a participação de Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador das Áreas de Humanidades da FAPESP; Natan Monsores, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB); e Maurício Tuffani, jornalista científico e editor do site ‘Direto da Ciência’.

Na abertura do evento, Renato Cordeiro destacou a necessidade de fomentar discussões sobre ética na ciência. Foto: Gutemberg Brito

Renato Cordeiro abriu a sessão apresentando o NEA como um espaço aberto aos debates acadêmicos em torno de temas interdisciplinares no campo da ciência, da política e da filosofia. "As questões relacionadas à ética, ao assédio e fraudes na ciência, bem como em outros setores da sociedade, são temáticas discutidas no âmbito do IOC e que constituem objeto de preocupação da comunidade científica e das principais agências de fomento. Por isso, optamos por retomar o Núcleo de Estudos abordando esse assunto", destacou. O pesquisador acrescentou que as instituições de ensino e pesquisa são espaços importantes na promoção do debate sobre questões de ética e assédio na ciência. "Os casos de fraude na pesquisa não são um assunto novo. No exterior, eles vêm sendo bastante discutidos pela comunidade científica, o que não ocorre no Brasil. As instituições de ensino e pesquisa podem fomentar esse debate criando disciplinas que abordem tais temáticas em sala de aula", salientou.

Individual e coletivo em conexão

Professor da USP, Luiz Henrique Lopes dos Santos abordou a importância da ética profissional para a integridade e o desenvolvimento da pesquisa científica. Para ele, o trabalho do cientista deve ser guiado pela conjunção de deveres éticos universais e deveres éticos específicos do campo científico. “Um dos compromissos que o cientista tem em relação à sua profissão está relacionado à qualidade do resultado do seu trabalho. O trabalho individual de um pesquisador apenas se efetiva como parte da construção da ciência entendida como um patrimônio coletivo”, ressaltou.

Santos usou como exemplo a relação entre orientadores e estudantes. “Qual é o limite da intervenção do tutor no desenvolvimento do trabalho do tutelado? A formação de um pesquisador não se faz sem que ele aprenda a exercer a sua autonomia, exercendo-a de fato”, ponderou. “É nesse jogo entre orientação, supervisão e autonomia que se coloca a questão do assédio. Disputas de autoria e coautoria, por exemplo, trazem prejuízos para o andamento da pesquisa”, pontuou.

Coordenador das Áreas de Humanidades da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Santos contribuiu para a elaboração do Código de Boas Práticas Científicas publicado pela agência de fomento em 2011 [clique aqui para conhecer]. “Há um estado de anomia em relação à avaliação da produção científica, no Brasil e no mundo. Por um lado, não faltam métricas e critérios para mensuração quantitativa, porém, não há o desenvolvimento, com a mesma sofisticação, de maneiras de avaliação qualitativa daquilo que está sendo produzido”, criticou.

Do observador solitário ao trabalho em rede

"A ciência que a gente faz hoje é diferente da que se fazia tempos atrás. Antes, ela era logoteórica, ou seja, pautada na observação isolada. Atualmente, após sucessivas mudanças, o fazer ciência passou a associar conhecimento – produzir saber – à prática social – rotina, cotidiano. Ele se articula em redes, que, porventura, disputam nichos com outras redes de pesquisa. Tudo isso traz à tona a discussão em torno de como viver neste universo competitivo, que envolve relações conflituosas e está cercado de pressões por produtividade, sem sucumbir a condutas duvidosas", explicou Natan Monsores, professor do Departamento de Saúde Coletiva da UnB, antes de elencar alguns dos comportamentos que representam uma postura questionável no mundo científico. "A prática de fatiar uma única descoberta para publicá-la no maior número possível de artigos científicos, o plágio e a competição desleal, sem falar na fabricação e roubo de dados, são condutas recorrentes no atual cenário da pesquisa", declarou.

Luiz Henrique Lopes dos Santos (esquerda), Natan Monsores e Maurício Tuffani foram os convidados da edição de retomada do evento. Foto: Gutemberg Brito

Monsores pontuou também alguns tipos de assédio presentes no universo científico, que, muitas vezes, passam despercebidos. “Oferecer instruções confusas e imprecisas, dificultar o trabalho, atribuir erros imaginários, sobrecarregar com tarefas, fazer críticas ou brincadeiras de mau gosto, impor horários injustificados e restringir o uso de equipamentos e espaços são práticas que podem ser consideradas assédio. O profissional ou estudante que esteja passando por isso precisa encontrar ajuda dentro da instituição”, comentou o professor, ressaltando que outra conduta muito comum, mas que as pessoas não costumam enxergar como assédio, é o fato de um pesquisador querer se incluir como coautor de um determinado artigo científico na medida em que viabiliza acesso a equipamentos ou verbas para realização de experimentos. “Essas ações não podem ser vistas como naturais. Podemos mudá-las buscando saber quais mecanismos a instituição oferece para ajudar o oprimido a romper com essas formas de assédio. Precisamos criar mecanismos para nos proteger, sem esquecer de protegê-los também”, concluiu. Destacou, ainda, a discriminação envolvendo gênero, bem como episódios de assédio sexual. Nesse aspecto, enumerou situações de misoginia que podem envolver a insistência em repetir instruções de forma desnecessária (pressupondo que a interlocutora não as domina ou não as compreendeu), supostas brincadeiras que remetem aos benefícios estéticos da presença de mulheres nos ambientes de laboratório e uma tendência a interromper a fala da mulher durante diálogos.

Pagou, publicou

Editor do site ‘Direto da Ciência’, o jornalista Maurício Tuffani trouxe à tona condutas utilizadas por cientistas para driblar a exigência de produtividade. O jornalista chamou a atenção para as ‘conferências caça-níqueis’ (chamadas ‘scam conferences’, em inglês) e para as chamadas ‘revistas predatórias’. “Os periódicos predatórios transformam a taxa de processamento editorial em taxa de publicação, ou seja, alguns pesquisadores que não conseguem publicar em periódicos rigorosos acabam recorrendo à estratégia de ‘pagou, publicou’, o que transforma esse nicho no escoamento de toda uma produção acadêmica de qualidade duvidosa”, explicou.

Com quase 40 anos de carreira, Tuffani atuou como editor-chefe da revista Scientific American Brasil e como repórter e editor do jornal Folha de S. Paulo. Ele destacou que a percepção pública da figura do cientista está diretamente relacionada à veiculação de reportagens na mídia. Sua crítica ao panorama atual do jornalismo científico é contundente: “há uma espécie ‘chapa branca’ no jornalismo científico. Muitas das reportagens que repercutem as recentes descobertas não contemplam mais de um ponto de vista, deixando de cumprir um papel essencial do jornalismo”, concluiu, destacando aspectos como a ausência de contraditório e o uso excessivo de fontes oficiais.

Debate propositivo

A rodada de debate após as apresentações mobilizou o público. Foi apontada a necessidade de observar criticamente a composição de comissões e instâncias que tratem do tema do assédio no âmbito das instituições, de modo a garantir um perfil plural, que não reproduza as estruturas de poder estabelecidas. Como sugestão focada na rotina do Instituto, foi citada a oportunidade de inclusão de um módulo específico sobre bioética na rotina de treinamento em Qualidade, Biosseguraça e Ambiente, oferecida de forma continuada aos profissionais e estudantes que iniciam atividades no IOC. Também foram elencadas as possibilidades de estimular eventos dedicados à sensibilização em bioética e assédio e de desenvolver um termo de compromisso em bioética, a ser pactuado junto aos profissionais que atuam em atividades de laboratório.

Mudança no perfil do cientista, assédio no universo da ciência e papel da imprensa na divulgação científica estiveram em pauta na retomada das atividades do Núcleo de Estudos Avançados do IOC
Por: 
lucas
kadu

Três questões com grande apelo na atualidade − ética, assédio e boas práticas na produção científica − marcaram a sessão de retomada das atividades do Núcleo de Estudos Avançados (NEA) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), iniciativa criada há mais de 15 anos pelo pesquisador Renato Cordeiro, então diretor do Instituto e atual coordenador do Núcleo [confira entrevista com o coordenador]. Realizado na manhã desta sexta-feira (01/09), o encontro teve a participação de Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador das Áreas de Humanidades da FAPESP; Natan Monsores, professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB); e Maurício Tuffani, jornalista científico e editor do site ‘Direto da Ciência’.

Na abertura do evento, Renato Cordeiro destacou a necessidade de fomentar discussões sobre ética na ciência. Foto: Gutemberg Brito

Renato Cordeiro abriu a sessão apresentando o NEA como um espaço aberto aos debates acadêmicos em torno de temas interdisciplinares no campo da ciência, da política e da filosofia. "As questões relacionadas à ética, ao assédio e fraudes na ciência, bem como em outros setores da sociedade, são temáticas discutidas no âmbito do IOC e que constituem objeto de preocupação da comunidade científica e das principais agências de fomento. Por isso, optamos por retomar o Núcleo de Estudos abordando esse assunto", destacou. O pesquisador acrescentou que as instituições de ensino e pesquisa são espaços importantes na promoção do debate sobre questões de ética e assédio na ciência. "Os casos de fraude na pesquisa não são um assunto novo. No exterior, eles vêm sendo bastante discutidos pela comunidade científica, o que não ocorre no Brasil. As instituições de ensino e pesquisa podem fomentar esse debate criando disciplinas que abordem tais temáticas em sala de aula", salientou.

Individual e coletivo em conexão

Professor da USP, Luiz Henrique Lopes dos Santos abordou a importância da ética profissional para a integridade e o desenvolvimento da pesquisa científica. Para ele, o trabalho do cientista deve ser guiado pela conjunção de deveres éticos universais e deveres éticos específicos do campo científico. “Um dos compromissos que o cientista tem em relação à sua profissão está relacionado à qualidade do resultado do seu trabalho. O trabalho individual de um pesquisador apenas se efetiva como parte da construção da ciência entendida como um patrimônio coletivo”, ressaltou.

Santos usou como exemplo a relação entre orientadores e estudantes. “Qual é o limite da intervenção do tutor no desenvolvimento do trabalho do tutelado? A formação de um pesquisador não se faz sem que ele aprenda a exercer a sua autonomia, exercendo-a de fato”, ponderou. “É nesse jogo entre orientação, supervisão e autonomia que se coloca a questão do assédio. Disputas de autoria e coautoria, por exemplo, trazem prejuízos para o andamento da pesquisa”, pontuou.

Coordenador das Áreas de Humanidades da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Santos contribuiu para a elaboração do Código de Boas Práticas Científicas publicado pela agência de fomento em 2011 [clique aqui para conhecer]. “Há um estado de anomia em relação à avaliação da produção científica, no Brasil e no mundo. Por um lado, não faltam métricas e critérios para mensuração quantitativa, porém, não há o desenvolvimento, com a mesma sofisticação, de maneiras de avaliação qualitativa daquilo que está sendo produzido”, criticou.

Do observador solitário ao trabalho em rede

"A ciência que a gente faz hoje é diferente da que se fazia tempos atrás. Antes, ela era logoteórica, ou seja, pautada na observação isolada. Atualmente, após sucessivas mudanças, o fazer ciência passou a associar conhecimento – produzir saber – à prática social – rotina, cotidiano. Ele se articula em redes, que, porventura, disputam nichos com outras redes de pesquisa. Tudo isso traz à tona a discussão em torno de como viver neste universo competitivo, que envolve relações conflituosas e está cercado de pressões por produtividade, sem sucumbir a condutas duvidosas", explicou Natan Monsores, professor do Departamento de Saúde Coletiva da UnB, antes de elencar alguns dos comportamentos que representam uma postura questionável no mundo científico. "A prática de fatiar uma única descoberta para publicá-la no maior número possível de artigos científicos, o plágio e a competição desleal, sem falar na fabricação e roubo de dados, são condutas recorrentes no atual cenário da pesquisa", declarou.

Luiz Henrique Lopes dos Santos (esquerda), Natan Monsores e Maurício Tuffani foram os convidados da edição de retomada do evento. Foto: Gutemberg Brito

Monsores pontuou também alguns tipos de assédio presentes no universo científico, que, muitas vezes, passam despercebidos. “Oferecer instruções confusas e imprecisas, dificultar o trabalho, atribuir erros imaginários, sobrecarregar com tarefas, fazer críticas ou brincadeiras de mau gosto, impor horários injustificados e restringir o uso de equipamentos e espaços são práticas que podem ser consideradas assédio. O profissional ou estudante que esteja passando por isso precisa encontrar ajuda dentro da instituição”, comentou o professor, ressaltando que outra conduta muito comum, mas que as pessoas não costumam enxergar como assédio, é o fato de um pesquisador querer se incluir como coautor de um determinado artigo científico na medida em que viabiliza acesso a equipamentos ou verbas para realização de experimentos. “Essas ações não podem ser vistas como naturais. Podemos mudá-las buscando saber quais mecanismos a instituição oferece para ajudar o oprimido a romper com essas formas de assédio. Precisamos criar mecanismos para nos proteger, sem esquecer de protegê-los também”, concluiu. Destacou, ainda, a discriminação envolvendo gênero, bem como episódios de assédio sexual. Nesse aspecto, enumerou situações de misoginia que podem envolver a insistência em repetir instruções de forma desnecessária (pressupondo que a interlocutora não as domina ou não as compreendeu), supostas brincadeiras que remetem aos benefícios estéticos da presença de mulheres nos ambientes de laboratório e uma tendência a interromper a fala da mulher durante diálogos.

Pagou, publicou

Editor do site ‘Direto da Ciência’, o jornalista Maurício Tuffani trouxe à tona condutas utilizadas por cientistas para driblar a exigência de produtividade. O jornalista chamou a atenção para as ‘conferências caça-níqueis’ (chamadas ‘scam conferences’, em inglês) e para as chamadas ‘revistas predatórias’. “Os periódicos predatórios transformam a taxa de processamento editorial em taxa de publicação, ou seja, alguns pesquisadores que não conseguem publicar em periódicos rigorosos acabam recorrendo à estratégia de ‘pagou, publicou’, o que transforma esse nicho no escoamento de toda uma produção acadêmica de qualidade duvidosa”, explicou.

Com quase 40 anos de carreira, Tuffani atuou como editor-chefe da revista Scientific American Brasil e como repórter e editor do jornal Folha de S. Paulo. Ele destacou que a percepção pública da figura do cientista está diretamente relacionada à veiculação de reportagens na mídia. Sua crítica ao panorama atual do jornalismo científico é contundente: “há uma espécie ‘chapa branca’ no jornalismo científico. Muitas das reportagens que repercutem as recentes descobertas não contemplam mais de um ponto de vista, deixando de cumprir um papel essencial do jornalismo”, concluiu, destacando aspectos como a ausência de contraditório e o uso excessivo de fontes oficiais.

Debate propositivo

A rodada de debate após as apresentações mobilizou o público. Foi apontada a necessidade de observar criticamente a composição de comissões e instâncias que tratem do tema do assédio no âmbito das instituições, de modo a garantir um perfil plural, que não reproduza as estruturas de poder estabelecidas. Como sugestão focada na rotina do Instituto, foi citada a oportunidade de inclusão de um módulo específico sobre bioética na rotina de treinamento em Qualidade, Biosseguraça e Ambiente, oferecida de forma continuada aos profissionais e estudantes que iniciam atividades no IOC. Também foram elencadas as possibilidades de estimular eventos dedicados à sensibilização em bioética e assédio e de desenvolver um termo de compromisso em bioética, a ser pactuado junto aos profissionais que atuam em atividades de laboratório.

Edição: 
Raquel Aguiar

Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)