Um artigo recém-publicado na revista Nature Microbiology detalha dinâmicas de circulação do coronavírus no Brasil e faz um retrato das duas primeiras ondas da Covid-19. Entre outros resultados, o trabalho discute o papel da mobilidade populacional, das medidas de restrição aos deslocamentos e da emergência das primeiras variantes de preocupação na disseminação da doença.
Liderado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Instituto Butantan e Universidade de São Paulo (USP), o estudo contou com a participação de mais de cem cientistas, que atuam em instituições de oito países: Brasil, Paraguai, Itália, África do Sul, Reino Unido, Portugal, Estados Unidos e Austrália.
Estudo analisou genomas de todo o Brasil. No mapa, os círculos indicam o volume de sequências genéticas referentes a cada estado. No gráfico, as cores sinalizam as diferentes linhagens virais detectadas. Fonte: Giovanetti, M. et al. Nat Microbiol. / Arte: Jefferson Mendes
Primeira autora do artigo, a pesquisadora visitante do Laboratório de Flavivírus do IOC, Marta Giovanetti, ressalta que os principais resultados do estudo foram divulgados rapidamente, em outubro de 2021, na plataforma de preprint medRxiv, com o objetivo de apoiar as políticas públicas de saúde e dar agilidade à pesquisa científica. A pesquisa contempla o período de janeiro de 2020 a setembro de 2021.
“Como pesquisadores, nós temos a obrigação de gerar dados para tentar entender os processos de dispersão de patógenos com potencial endêmico e epidêmico e, ao mesmo tempo, informar as autoridades de saúde e a população. O preprint permite esse rápido compartilhamento”, pontua Marta.
As plataformas de preprint possibilitam a publicação imediata de estudos, sem processo de revisão. Posteriormente, os artigos são submetidos a revistas científicas, que divulgam as pesquisas após a revisão de outros cientistas, chamada de revisão por pares.
A pesquisa sequenciou mais de 3,8 mil genomas do SARS-CoV-2 referentes a casos registrados em oito estados brasileiros entre fevereiro de 2020 e junho de 2021. Além do IOC, Instituto Butantan e USP, Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) de cinco estados brasileiros e do Paraguai, Instituto Carlos Chagas (Fiocruz-Paraná) e Hemocentro de Ribeirão Preto (SP) colaboraram com os sequenciamentos.
O volume de sequenciamentos representa cerca de 20% do total de genomas decodificados no Brasil no período do estudo. Nas análises, os pesquisadores também analisaram cerca de 13 mil genomas disponíveis em bancos de dados públicos referentes a casos registrados no país no período, alcançando um total de aproximadamente 17 mil genomas. Também foram analisadas informações referentes a casos no Paraguai.
O estudo aponta que a maior parte das introduções do coronavírus no Brasil ocorreu antes da implantação de medidas restritivas, como fechamento de escolas e negócios. A maioria das cepas foi introduzida a partir da Europa, com uma estimativa de 114 introduções independentes antes de abril de 2020. No período mais intenso de restrições, de abril até agosto de 2020, 33 introduções do coronavírus foram registradas.
Apesar do grande número de importações, houve aproximadamente 10 vezes mais eventos de exportação de linhagens do Brasil para o exterior, considerando todo o período analisado.
À esquerda, introduções do coronavírus a partir de diferentes regiões do mundo para o Brasil. À direita, volume de exportações do vírus (em cinza) supera o de importações (em preto). Fonte: Giovanetti, M. et al. Nat Microbiol. / Arte: Jefferson MendesSegundo Marta, a passagem do país de importador a exportador do coronavírus está ligada à rápida capacidade de dispersão do patógeno no território brasileiro.
“Isso foi observado também em outros países. Os primeiros casos confirmados foram ligados à importação direta. Depois da implementação de medidas restritivas no Brasil e em outros países do mundo, o número de introduções se reduziu, mas houve grande transmissão comunitária no país”, explica Marta.
A disseminação do coronavírus se tornou mais intensa após o relaxamento das restrições e atingiu um pico no período de circulação de duas variantes que emergiram no Brail, chamadas de Gama (P.1) e Zeta (P.2).
Em linha com o observado em outras pesquisas, o estudo indica que a variante Gama emergiu provavelmente em Manaus no final de novembro de 2020. Já a variante Zeta – identificada pela primeira vez no Rio de Janeiro em outubro de 2020 – provavelmente teve origem no Paraná no mês de agosto.
O estudo destaca que o pico de mortes por Covid-19 no Brasil foi registrado em abril de 2021, com mais de 4 mil óbitos por dia, num período de circulação de variantes virais, com relaxamento de medidas restritivas e vacinação ainda incipiente.
“A capacidade de acumular mutações, que leva ao surgimento das variantes genéticas, permite ao vírus continuar circulando. Isso é favorecido com a maior circulação do patógeno”, pontua Marta.
A partir do Brasil, as variantes Gama e Zeta se espalharam para outros países. O estudo apontou 316 exportações da linhagem Gama e 32 da Zeta, sendo a maioria (65%) para a América do Sul.
“A variante Gama circulou muito na América Latina, o que tem a ver com a proximidade geográfica e a mobilidade populacional. No mesmo período, por exemplo, as variantes Alfa, originada no Reino Unido, e Beta, que emergiu na África do Sul, foram as mais prevalentes na Europa”, explica a pesquisadora.
O estudo expandiu significativamente o conhecimento sobre a dinâmica do vírus no Paraguai. Até julho de 2021, apenas 165 genomas virais tinham sido decodificados no país. Em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e o Lacen do Paraguai, os pesquisadores sequenciaram mais 65 amostras, ampliando em 40% o volume de sequências disponíveis.
O estudo mapeou a circulação de várias linhagens do coronavírus no país, vinculadas a múltiplas importações e à transmissão local. A análise indicou ainda que a maioria das linhagens em circulação em território paraguaio em 2021 tinha origem no Brasil, com predomínio da variante Gama a partir de março, o que reforça a importância de medidas não farmacológicas para tentar conter a disseminação de cepas virais entre países vizinhos.
O monitoramento das cepas do coronavírus em circulação foi mantido pelos cientistas ao longo de 2021 e 2022. Em março deste ano, o grupo publicou um artigo na revista ‘Virus Evolution’ sobre o processo de substituição da variante Gama pela Delta no Brasil, que ocorreu no segundo semestre de 2021.
A dinâmica de circulação de diferentes linhagens no país, desde o começo da epidemia até a chegada da Ômicron, em novembro de 2021, foi discutida em publicação feita em abril no periódico ‘Virus Research’.
“A geração de genomas e a análise dos dados é crucial para entender e acompanhar a evolução de patógenos, especialmente considerando a circulação de múltiplos microrganismos no Brasil, como SARS-CoV-2, dengue, Zika, chikungunya e monkeypox, entre outros. Isso ressalta a necessidade de mantermos ativos os sistemas de monitoramento”, enfatiza Marta.
Um artigo recém-publicado na revista Nature Microbiology detalha dinâmicas de circulação do coronavírus no Brasil e faz um retrato das duas primeiras ondas da Covid-19. Entre outros resultados, o trabalho discute o papel da mobilidade populacional, das medidas de restrição aos deslocamentos e da emergência das primeiras variantes de preocupação na disseminação da doença.
Liderado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Instituto Butantan e Universidade de São Paulo (USP), o estudo contou com a participação de mais de cem cientistas, que atuam em instituições de oito países: Brasil, Paraguai, Itália, África do Sul, Reino Unido, Portugal, Estados Unidos e Austrália.
Estudo analisou genomas de todo o Brasil. No mapa, os círculos indicam o volume de sequências genéticas referentes a cada estado. No gráfico, as cores sinalizam as diferentes linhagens virais detectadas. Fonte: Giovanetti, M. et al. Nat Microbiol. / Arte: Jefferson Mendes
Primeira autora do artigo, a pesquisadora visitante do Laboratório de Flavivírus do IOC, Marta Giovanetti, ressalta que os principais resultados do estudo foram divulgados rapidamente, em outubro de 2021, na plataforma de preprint medRxiv, com o objetivo de apoiar as políticas públicas de saúde e dar agilidade à pesquisa científica. A pesquisa contempla o período de janeiro de 2020 a setembro de 2021.
“Como pesquisadores, nós temos a obrigação de gerar dados para tentar entender os processos de dispersão de patógenos com potencial endêmico e epidêmico e, ao mesmo tempo, informar as autoridades de saúde e a população. O preprint permite esse rápido compartilhamento”, pontua Marta.
As plataformas de preprint possibilitam a publicação imediata de estudos, sem processo de revisão. Posteriormente, os artigos são submetidos a revistas científicas, que divulgam as pesquisas após a revisão de outros cientistas, chamada de revisão por pares.
A pesquisa sequenciou mais de 3,8 mil genomas do SARS-CoV-2 referentes a casos registrados em oito estados brasileiros entre fevereiro de 2020 e junho de 2021. Além do IOC, Instituto Butantan e USP, Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens) de cinco estados brasileiros e do Paraguai, Instituto Carlos Chagas (Fiocruz-Paraná) e Hemocentro de Ribeirão Preto (SP) colaboraram com os sequenciamentos.
O volume de sequenciamentos representa cerca de 20% do total de genomas decodificados no Brasil no período do estudo. Nas análises, os pesquisadores também analisaram cerca de 13 mil genomas disponíveis em bancos de dados públicos referentes a casos registrados no país no período, alcançando um total de aproximadamente 17 mil genomas. Também foram analisadas informações referentes a casos no Paraguai.
O estudo aponta que a maior parte das introduções do coronavírus no Brasil ocorreu antes da implantação de medidas restritivas, como fechamento de escolas e negócios. A maioria das cepas foi introduzida a partir da Europa, com uma estimativa de 114 introduções independentes antes de abril de 2020. No período mais intenso de restrições, de abril até agosto de 2020, 33 introduções do coronavírus foram registradas.
Apesar do grande número de importações, houve aproximadamente 10 vezes mais eventos de exportação de linhagens do Brasil para o exterior, considerando todo o período analisado.
À esquerda, introduções do coronavírus a partir de diferentes regiões do mundo para o Brasil. À direita, volume de exportações do vírus (em cinza) supera o de importações (em preto). Fonte: Giovanetti, M. et al. Nat Microbiol. / Arte: Jefferson MendesSegundo Marta, a passagem do país de importador a exportador do coronavírus está ligada à rápida capacidade de dispersão do patógeno no território brasileiro.
“Isso foi observado também em outros países. Os primeiros casos confirmados foram ligados à importação direta. Depois da implementação de medidas restritivas no Brasil e em outros países do mundo, o número de introduções se reduziu, mas houve grande transmissão comunitária no país”, explica Marta.
A disseminação do coronavírus se tornou mais intensa após o relaxamento das restrições e atingiu um pico no período de circulação de duas variantes que emergiram no Brail, chamadas de Gama (P.1) e Zeta (P.2).
Em linha com o observado em outras pesquisas, o estudo indica que a variante Gama emergiu provavelmente em Manaus no final de novembro de 2020. Já a variante Zeta – identificada pela primeira vez no Rio de Janeiro em outubro de 2020 – provavelmente teve origem no Paraná no mês de agosto.
O estudo destaca que o pico de mortes por Covid-19 no Brasil foi registrado em abril de 2021, com mais de 4 mil óbitos por dia, num período de circulação de variantes virais, com relaxamento de medidas restritivas e vacinação ainda incipiente.
“A capacidade de acumular mutações, que leva ao surgimento das variantes genéticas, permite ao vírus continuar circulando. Isso é favorecido com a maior circulação do patógeno”, pontua Marta.
A partir do Brasil, as variantes Gama e Zeta se espalharam para outros países. O estudo apontou 316 exportações da linhagem Gama e 32 da Zeta, sendo a maioria (65%) para a América do Sul.
“A variante Gama circulou muito na América Latina, o que tem a ver com a proximidade geográfica e a mobilidade populacional. No mesmo período, por exemplo, as variantes Alfa, originada no Reino Unido, e Beta, que emergiu na África do Sul, foram as mais prevalentes na Europa”, explica a pesquisadora.
O estudo expandiu significativamente o conhecimento sobre a dinâmica do vírus no Paraguai. Até julho de 2021, apenas 165 genomas virais tinham sido decodificados no país. Em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e o Lacen do Paraguai, os pesquisadores sequenciaram mais 65 amostras, ampliando em 40% o volume de sequências disponíveis.
O estudo mapeou a circulação de várias linhagens do coronavírus no país, vinculadas a múltiplas importações e à transmissão local. A análise indicou ainda que a maioria das linhagens em circulação em território paraguaio em 2021 tinha origem no Brasil, com predomínio da variante Gama a partir de março, o que reforça a importância de medidas não farmacológicas para tentar conter a disseminação de cepas virais entre países vizinhos.
O monitoramento das cepas do coronavírus em circulação foi mantido pelos cientistas ao longo de 2021 e 2022. Em março deste ano, o grupo publicou um artigo na revista ‘Virus Evolution’ sobre o processo de substituição da variante Gama pela Delta no Brasil, que ocorreu no segundo semestre de 2021.
A dinâmica de circulação de diferentes linhagens no país, desde o começo da epidemia até a chegada da Ômicron, em novembro de 2021, foi discutida em publicação feita em abril no periódico ‘Virus Research’.
“A geração de genomas e a análise dos dados é crucial para entender e acompanhar a evolução de patógenos, especialmente considerando a circulação de múltiplos microrganismos no Brasil, como SARS-CoV-2, dengue, Zika, chikungunya e monkeypox, entre outros. Isso ressalta a necessidade de mantermos ativos os sistemas de monitoramento”, enfatiza Marta.
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)