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Malária no Brasil: novos desafios para uma velha doença

Artigo publicado por especialistas em malária na edição de dezembro da revista Scientific American
Por Jornalismo IOC21/12/2010 - Atualizado em 10/12/2019

Artigo originalmente publicado na edição de dezembro da revista Scientific American. Foto de capa de Genilton Vieira/IOC.

Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, Patrícia Brasil* e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda**

A malária é talvez a doença mais conhecida da história da humanidade. Há cerca de 10.000 anos, quando o homem passou a se dedicar à agricultura, seu intenso contato com os mosquitos permitiu que a doença se estabelecesse de vez entre os humanos. Mesmo antes de conhecer seu agente etiológico ou sua forma de transmissão, Hipócrates, na Grécia, já descrevia uma doença que se apresentava sob a forma de uma febre terçã (no dia um e no dia três ou seja, a cada 48 horas). Recentemente, uma publicação do Jornal da Associação Médica Americana (JAMA) publicou que foi encontrado o DNA de Plasmodium falciparum (um dos agentes causadores da malária) nos restos mortais do faraó Tutankamon, morto aos 19 anos de idade, provavelmente vítima da doença. Na Catedral de St. Thomas, em Mumbai, Índia, onde a doença é ainda hoje um grande problema de saúde pública, há várias lápides de pessoas sepultadas dentro da igreja, onde se lê que a causa da morte teria sido uma febre maligna.

Só em 1880, o médico militar francês Alphonse Laveran, trabalhando em Constantina, Argélia, após constatar, em autópsias, a presença de pigmentos enegrecidos, sobretudo no baço e fígado, em pacientes mortos por malária, resolveu estudar o sangue fresco dos pacientes e observou, pela primeira vez, a presença de um pigmento acastanhado (a hemozoína) e do protozoário Plasmodium no interior das hemácias. Desde então foram descritas as quatro espécies de Plasmodium que infectam o homem: Plasmodium vivax, Plasmodium falciparum, Plasmodium ovale e Plasmodium malariae. Em 2008, o Plasmodium knowlesi, parasito até então conhecido como causador de malária unicamente em macacos, foi observado em casos complicados de infecção humana. A partir daquele momento, esta espécie passou a constituir a quinta espécie de Plasmodium capaz de infectar o homem, embora alguns autores questionem se ela deva ser considerada uma espécie de Plasmodium humano por não haver ainda provas de que seja transmitida, através do mosquito vetor, entre os homens.

A atenção dos pesquisadores sempre esteve voltada para a infecção por P. falciparum, espécie mais letal e largamente predominante na África. De fato, a ausência de determinantes genéticos, como o fator Duffy, nas hemácias daquela população a torna resistente ao P. vivax, que precisa deste receptor celular para infectar o glóbulo vermelho. Segunda espécie mais prevalente no planeta, o P. vivax é, entretanto, considerada a espécie mais antiga de todas, tendo evoluído de maneira a causar uma doença quase sempre benigna. No processo de co-evolução, o P. falciparum, espécie mais recente, ainda enfrenta desafios no que diz respeito à sua adaptação, visto que desencadeia uma inflamação muito agressiva no organismo, sendo responsável por muitas formas graves e mortes. Estudo deste ano publicado na revista Science afirma que o P. falciparum se originou de um Plasmodium encontrado em gorilas, mas se acredita que, originalmente, tanto os plasmodia de aves quanto os que infectam os primatas derivam de um parasito ancestral que teria existido há mais de cem milhões de anos.

A co-evolução do P. vivax com os seres humanos foi tão bem-sucedida que a espécie passou a se perpetuar nas áreas endêmicas. Isso é facilitado pelo fato de 70% dos pacientes apresentarem, no sangue, já no primeiro dia de febre, formas do parasito que podem infectar os mosquitos (os chamados ‘gametócitos’), favorecendo a transmissão. Além disso, os pacientes podem formar no fígado as formas dormentes conhecidas como ‘hipnozoítos’, que são responsáveis pelas recaídas meses depois da primeira infecção. Isso permite que, mesmo depois de uma estação fria, sem mosquitos nem transmissão da doença, a malária possa voltar em uma determinada comunidade. Não é por acaso que em localidades como Nova York ou Baltimore, nos Estados Unidos, a forma mais prevalente de infecção malárica tenha sido por P. vivax. O problema da malária em Nova York era tão sério no começo do século XX, que até hoje existe no primeiro piso do Museu de História Natural uma réplica em cera de um Anopheles gambiae, um dos mosquitos vetores da doença.

No campo da saúde pública, a primeira grande intervenção no combate à malária de que se tem notícia foi a Campanha de Saneamento Italiana, do final do século XIX, que, ao sanear a Itália, promoveu também o controle dos criadouros do vetor, mesmo que os italianos ainda não soubessem que era o mosquito o responsável pela transmissão da doença (então atribuída ao mal ar das áreas pantanosas, o que explica a origem do termo mal’aria). Os francófonos se referem à doença como febre palustre, ou paludismo, decorrente dos pântanos. Na primeira metade do século XX, no Brasil, a Fundação Rockefeller foi responsável pela eliminação da malária transmitida por Anopheles gambiae, acidentalmente introduzida por navios franceses no Nordeste brasileiro. Uma campanha intensa de borrifação de DDT em cidades e caminhões nas estradas que davam acesso ao interior do país evitou que esta espécie de alta competência vetorial na transmissão da doença chegasse à Amazônia brasileira, onde sua presença teria sido desastrosa.

Na década de 1950, a Campanha de Erradicação da Malária, proposta pela Organização Mundial da saúde (OMS) e baseada no controle do mosquito e na busca ativa e tratamento dos casos, tinha a ambição de erradicar a malária do planeta. Apesar do grande esforço político e econômico, tal objetivo não foi alcançado. Entretanto, decorreu dessa campanha a eliminação da malária em vários países. No Brasil, logramos a eliminação da malária em praticamente toda a Região Extra-Amazônica, situação que se mantém até os dias atuais.

Ainda que corresponda a somente uma estimativa, os números da OMS apontam para a ocorrência de cerca de 250 milhões de casos e 860 mil mortes (cerca de 90% na África) por malária, em 2008. No Brasil, mais do que estimativas, temos números quase exatos dos casos registrados (uma vitória do Programa Nacional de Controle da Malária - PNCM): em 2009, foram cerca de 306 mil casos, mais de 99% dos quais na Amazônia. O número corresponde a um decréscimo superior a 50% em relação ao registrado em 2000 (613.241 casos). Esta conquista pode ser explicada por uma ação intensa do PNCM em capilarizar por toda a Amazônia uma rede de diagnóstico e tratamento no início da doença, evitando assim as mortes, quase sempre um reflexo do diagnóstico retardado e da falta de medicação adequada. Assistimos assim, entre 2002 e 2009, a um aumento aproximado de 37% no número de exames realizados, de 60% no de unidades de diagnóstico e de 540% no de agentes de saúde na Amazônia. Como resultado, os números de hospitalizações e óbitos caíram no país em cerca de 60% e 40%, respectivamente, no mesmo período.

Porém, ainda há um longo caminho pela frente. No Brasil, o Programa de Controle (nome que se preferiu aos termos ‘erradicação’ ou ‘eliminação’ após a Conferência Ministerial de Amsterdã, em 1992) da Malária tem incluído planos de intensificação das ações, muitas vezes como medidas pontuais motivadas pelo aumento absurdo de casos na Amazônia Brasileira, onde se concentram atualmente quase 100% dos casos. Tais estratégias explicam o gráfico serrilhado da evolução da doença no Brasil, com uma sucessão de aumentos e reduções do número de casos.

Não há dados oficiais sobre o número de brasileiros que adquirem malária em viagens à África, mas no Instituto de Pesquisas Clínicas Evandro Chagas (IPEC/Fiocruz), onde funciona o Serviço de Referência do Viajante com Febre, da Fiocruz, são diagnosticados e tratados cerca de 20% dos casos de malária do Município do Rio de Janeiro. Ali, tem sido atendido um número crescente de viajantes brasileiros infectados, geralmente pela primeira vez, em deslocamentos realizados ao continente africano. Os casos são, em sua totalidade, de malária por P. falciparum, e, portanto, malária potencialmente grave, quando não diagnosticada e tratada nas primeiras 48 horas do início do quadro. Usualmente, febre e dor de cabeça surgem como único sinal e sintoma. O atraso no diagnóstico e tratamento pode resultar em complicações no cérebro, pulmões, rins, células do sangue e levar à morte. Assim, um dos desafios, também no Brasil, hoje, é a chamada malária do viajante, problema que impulsionou a pesquisa em malária nos Estados Unidos depois da Guerra do Vietnã, durante a qual um número expressivo de soldados morreram acometidos pela doença.

Embora muitas equipes venham trabalhando em seu desenvolvimento em vários centros de pesquisa no mundo, não existe ainda uma vacina contra a malária. Como a doença é transmitida pela picada da fêmea do mosquito Anopheles, evitar o contato com o vetor corresponde à forma mais eficaz de prevenir a infecção e a doença. Na Ásia e na África, o uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas piretróides tem se mostrado uma estratégia utilizável mesmo em populações desprovidas de recursos e reduziu a prevalência e a gravidade da doença em localidades onde estudos controlados têm sido realizados. Pesquisas semelhantes conduzidas na Amazônia brasileira mostraram resultados promissores, como a diminuição da densidade vetorial no intra-domicílio. Um estudo com sete mil mosquiteiros em populações acreanas mostrou redução da malária e outro com setenta mil no Vale do Juruá e de Sena Madureira apontou no sentido de efeitos protetores mais marcados contra a malária por P. falciparum em crianças e mulheres, grupos em que a doença costuma ser mais grave. Como resultado, um projeto financiado pelo Fundo Global analisará o impacto do uso de 1.100.000 mosquiteiros impregnados em 47 municípios de seis estados da Amazônia Brasileira (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima).

O uso de roupas fechadas e impregnadas com permetrina ou deltametrina, a aplicação de repelentes sobre as partes expostas do corpo (DEET até 10% para crianças e 50% para adultos) e o cuidado de hospedar-se em locais com ar condicionado ou telas protetoras podem ter bastante impacto como medidas profiláticas no nível individual e são aconselhados para viajantes. Infelizmente, para os residentes das áreas endêmicas estas medidas não parecem muito adequadas.

O uso de medicação não impede a infecção, mas interrompe a multiplicação do parasito no sangue, o que pode evitar ou adiar o aparecimento das manifestações clínicas da doença e ser útil em locais inacessíveis aos serviços de saúde, o que é raro no Brasil. O uso desta medicação que depende do grau do risco de exposição, das espécies predominantes nas áreas e seu perfil de resistência às drogas antimaláricas comumente utilizadas, bem como do risco de efeitos adversos deve ser avaliado e, se justificado, prescrito somente por médicos especializados dos Centros de Informação e Atendimento de Viajantes.

Em grandes centros urbanos, onde não há transmissão de malária, apesar da disponibilidade de recursos técnicos e diagnósticos, a malária é comumente confundida com outras doenças, atrasando o diagnóstico e, portanto o início do tratamento. A experiência e capacitação para o diagnóstico clínico e laboratorial e a abordagem terapêutica da malária não são uniformes em áreas não-endêmicas. Na casuística no Rio de Janeiro, por exemplo, todos os pacientes com malária que tiveram ao menos uma passagem prévia por algum Serviço de Saúde, no âmbito do SUS ou de clínicas privadas, haviam recebido o diagnóstico de dengue, levando ao atraso no diagnóstico e no tratamento específico da malária. Há, portanto, a necessidade de divulgação da informação, para profissionais da área de saúde, sobre o risco do não reconhecimento dos casos de malária contraídos após viagens, cada vez mais comuns em áreas de transmissão.

Antes do deslocamento, o viajante deve ser informado e sensibilizado para a importância de utilizar medidas de proteção durante a estadia em área de transmissão. Em grande parte das capitais da região Extra-Amazônica do país, há Centros de Aconselhamento para Viajantes, onde consultas médicas podem ser agendadas previamente a fim de que o risco de adquirir malária ou outras doenças seja avaliado e reduzido. As estratégias de proteção são baseadas nas características do deslocamento e no risco individual. Se a viagem for planejada, as medidas podem ser otimizadas. O viajante deve ser instruído, sobretudo, a procurar mandatoriamente Serviços Especializados de Diagnóstico e Atendimento de Malária na presença de qualquer forma de febre posterior à viagem, independentemente do tempo decorrido após o retorno da área de transmissão (há casos de aparecimento de sintomas meses após a viagem) e não obstante a utilização de todas as medidas de proteção durante a viagem, inclusive de medicação.

Nas áreas de maior endemicidade no Brasil, o diagnóstico costuma acontecer com mais facilidade, em função de cerca de 60% das pessoas procurarem os postos de diagnóstico com menos de dois dias de febre. Entretanto, se, por um lado, o grande número de exames realizados diariamente mantém os microscopistas das áreas endêmicas mais capacitados para o diagnóstico e os médicos habituados a evocar o diagnóstico, por outro, a população banaliza o diagnóstico da doença e muitas vezes não segue o tratamento de forma correta, sobretudo porque o P. vivax, espécie predominante no país, cursa habitualmente sem complicações. Paradoxalmente, o número decrescente de mortes por malária no Brasil faz com que os governantes e a própria população não tomem medidas mais drásticas em relação ao controle mais eficaz.

A malária é uma emergência médica. A partir do momento do diagnóstico, o tratamento específico deve ser instituído imediatamente. Para isso, é importante a confirmação da espécie de Plasmodium causador da infecção por um microscopista com experiência na área. Como a letalidade e a gravidade dos casos são maiores nas áreas sem transmissão (justamente em função do habitual atraso no diagnóstico e tratamento), é importante que o acesso ao tratamento seja simplificado e descentralizado, sobretudo as formas parenterais das medicações para tratamento da malária por P. falciparum, a mais grave. Uma importante ferramenta na abordagem da malária do viajante tem sido o uso de testes rápidos, que dispensam microscopistas bem treinados e podem ser realizados por praticamente qualquer pessoa.

Nas áreas endêmicas, o diagnóstico pode ser feito em um número grande de postos (quase 49.000 na Amazônia), que se integram ao Sistema Único de Saúde e ao Programa de Saúde da Família. Diagnóstico e tratamento são realizados rotineiramente por técnicos e agentes de saúde e apenas os casos mais complicados devem ser encaminhados às unidades de referência, com destaque para a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, em Manaus (AM), e o Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA).

A malária ainda é uma doença importante no cenário internacional, tendo se restringido às áreas mais tropicais e mais pobres do planeta nas últimas décadas, quando comparado ao cenário mais difuso da doença dos últimos dois milênios. Os desafios atuais são diferentes. Se ontem não dispúnhamos de ferramentas de controle adequadas, hoje precisamos dar acesso às populações acometidas aos mosquiteiros impregnados, aos testes rápidos de diagnóstico e às novas drogas disponíveis para os parasitos resistentes. Em um momento em que se re-discute a possibilidade de erradicação da malária no planeta, a malária de mais difícil controle é aquela produzida pelo P. vivax, parasito sobre o qual sabemos menos. Em áreas onde o P. falciparum foi controlado, como no Brasil, onde responde por pouco mais de 15% dos casos notificados, a permanência de P. vivax pode ser o grande desafio do controle da doença para esse próximo milênio.

Leitura recomendada:

1) Oliveira-Ferreira J, Lacerda MVG, Brasil P, Ladislau JLB, Tauil PL & Daniel-Ribeiro CT. 2010. Malaria in Brazil: an overview. Malaria Journal 9, 115.
2) Cohen J. Origin of most deadly human malaria comes out of the mist. News of the week, Parasitology. Science 329, 1586-7. 24/09/2010. www.sciencemag.org.
3) Singh B, Kim Sung L, Matusop A, Radhakrishnan A, Shamsul SSG, Cox-Singh J, Thomas A & Conway DJ. 2004. A large focus of naturally acquired Plasmodium knowlesi infections in human beings. Lancet 363:101724.
4) Webb Jr JLA. Humanity\'s Burden: A Global History of Malaria. Cambridge University Press. Bew York. 2009.

* Médicos, Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro
** Médico, Pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, Manaus

23/12/10

Artigo publicado por especialistas em malária na edição de dezembro da revista Scientific American
Por: 
jornalismo

Artigo originalmente publicado na edição de dezembro da revista Scientific American. Foto de capa de Genilton Vieira/IOC.



Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, Patrícia Brasil* e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda**

A malária é talvez a doença mais conhecida da história da humanidade. Há cerca de 10.000 anos, quando o homem passou a se dedicar à agricultura, seu intenso contato com os mosquitos permitiu que a doença se estabelecesse de vez entre os humanos. Mesmo antes de conhecer seu agente etiológico ou sua forma de transmissão, Hipócrates, na Grécia, já descrevia uma doença que se apresentava sob a forma de uma febre terçã (no dia um e no dia três ou seja, a cada 48 horas). Recentemente, uma publicação do Jornal da Associação Médica Americana (JAMA) publicou que foi encontrado o DNA de Plasmodium falciparum (um dos agentes causadores da malária) nos restos mortais do faraó Tutankamon, morto aos 19 anos de idade, provavelmente vítima da doença. Na Catedral de St. Thomas, em Mumbai, Índia, onde a doença é ainda hoje um grande problema de saúde pública, há várias lápides de pessoas sepultadas dentro da igreja, onde se lê que a causa da morte teria sido uma febre maligna.

Só em 1880, o médico militar francês Alphonse Laveran, trabalhando em Constantina, Argélia, após constatar, em autópsias, a presença de pigmentos enegrecidos, sobretudo no baço e fígado, em pacientes mortos por malária, resolveu estudar o sangue fresco dos pacientes e observou, pela primeira vez, a presença de um pigmento acastanhado (a hemozoína) e do protozoário Plasmodium no interior das hemácias. Desde então foram descritas as quatro espécies de Plasmodium que infectam o homem: Plasmodium vivax, Plasmodium falciparum, Plasmodium ovale e Plasmodium malariae. Em 2008, o Plasmodium knowlesi, parasito até então conhecido como causador de malária unicamente em macacos, foi observado em casos complicados de infecção humana. A partir daquele momento, esta espécie passou a constituir a quinta espécie de Plasmodium capaz de infectar o homem, embora alguns autores questionem se ela deva ser considerada uma espécie de Plasmodium humano por não haver ainda provas de que seja transmitida, através do mosquito vetor, entre os homens.

A atenção dos pesquisadores sempre esteve voltada para a infecção por P. falciparum, espécie mais letal e largamente predominante na África. De fato, a ausência de determinantes genéticos, como o fator Duffy, nas hemácias daquela população a torna resistente ao P. vivax, que precisa deste receptor celular para infectar o glóbulo vermelho. Segunda espécie mais prevalente no planeta, o P. vivax é, entretanto, considerada a espécie mais antiga de todas, tendo evoluído de maneira a causar uma doença quase sempre benigna. No processo de co-evolução, o P. falciparum, espécie mais recente, ainda enfrenta desafios no que diz respeito à sua adaptação, visto que desencadeia uma inflamação muito agressiva no organismo, sendo responsável por muitas formas graves e mortes. Estudo deste ano publicado na revista Science afirma que o P. falciparum se originou de um Plasmodium encontrado em gorilas, mas se acredita que, originalmente, tanto os plasmodia de aves quanto os que infectam os primatas derivam de um parasito ancestral que teria existido há mais de cem milhões de anos.

A co-evolução do P. vivax com os seres humanos foi tão bem-sucedida que a espécie passou a se perpetuar nas áreas endêmicas. Isso é facilitado pelo fato de 70% dos pacientes apresentarem, no sangue, já no primeiro dia de febre, formas do parasito que podem infectar os mosquitos (os chamados ‘gametócitos’), favorecendo a transmissão. Além disso, os pacientes podem formar no fígado as formas dormentes conhecidas como ‘hipnozoítos’, que são responsáveis pelas recaídas meses depois da primeira infecção. Isso permite que, mesmo depois de uma estação fria, sem mosquitos nem transmissão da doença, a malária possa voltar em uma determinada comunidade. Não é por acaso que em localidades como Nova York ou Baltimore, nos Estados Unidos, a forma mais prevalente de infecção malárica tenha sido por P. vivax. O problema da malária em Nova York era tão sério no começo do século XX, que até hoje existe no primeiro piso do Museu de História Natural uma réplica em cera de um Anopheles gambiae, um dos mosquitos vetores da doença.

No campo da saúde pública, a primeira grande intervenção no combate à malária de que se tem notícia foi a Campanha de Saneamento Italiana, do final do século XIX, que, ao sanear a Itália, promoveu também o controle dos criadouros do vetor, mesmo que os italianos ainda não soubessem que era o mosquito o responsável pela transmissão da doença (então atribuída ao mal ar das áreas pantanosas, o que explica a origem do termo mal’aria). Os francófonos se referem à doença como febre palustre, ou paludismo, decorrente dos pântanos. Na primeira metade do século XX, no Brasil, a Fundação Rockefeller foi responsável pela eliminação da malária transmitida por Anopheles gambiae, acidentalmente introduzida por navios franceses no Nordeste brasileiro. Uma campanha intensa de borrifação de DDT em cidades e caminhões nas estradas que davam acesso ao interior do país evitou que esta espécie de alta competência vetorial na transmissão da doença chegasse à Amazônia brasileira, onde sua presença teria sido desastrosa.

Na década de 1950, a Campanha de Erradicação da Malária, proposta pela Organização Mundial da saúde (OMS) e baseada no controle do mosquito e na busca ativa e tratamento dos casos, tinha a ambição de erradicar a malária do planeta. Apesar do grande esforço político e econômico, tal objetivo não foi alcançado. Entretanto, decorreu dessa campanha a eliminação da malária em vários países. No Brasil, logramos a eliminação da malária em praticamente toda a Região Extra-Amazônica, situação que se mantém até os dias atuais.

Ainda que corresponda a somente uma estimativa, os números da OMS apontam para a ocorrência de cerca de 250 milhões de casos e 860 mil mortes (cerca de 90% na África) por malária, em 2008. No Brasil, mais do que estimativas, temos números quase exatos dos casos registrados (uma vitória do Programa Nacional de Controle da Malária - PNCM): em 2009, foram cerca de 306 mil casos, mais de 99% dos quais na Amazônia. O número corresponde a um decréscimo superior a 50% em relação ao registrado em 2000 (613.241 casos). Esta conquista pode ser explicada por uma ação intensa do PNCM em capilarizar por toda a Amazônia uma rede de diagnóstico e tratamento no início da doença, evitando assim as mortes, quase sempre um reflexo do diagnóstico retardado e da falta de medicação adequada. Assistimos assim, entre 2002 e 2009, a um aumento aproximado de 37% no número de exames realizados, de 60% no de unidades de diagnóstico e de 540% no de agentes de saúde na Amazônia. Como resultado, os números de hospitalizações e óbitos caíram no país em cerca de 60% e 40%, respectivamente, no mesmo período.

Porém, ainda há um longo caminho pela frente. No Brasil, o Programa de Controle (nome que se preferiu aos termos ‘erradicação’ ou ‘eliminação’ após a Conferência Ministerial de Amsterdã, em 1992) da Malária tem incluído planos de intensificação das ações, muitas vezes como medidas pontuais motivadas pelo aumento absurdo de casos na Amazônia Brasileira, onde se concentram atualmente quase 100% dos casos. Tais estratégias explicam o gráfico serrilhado da evolução da doença no Brasil, com uma sucessão de aumentos e reduções do número de casos.

Não há dados oficiais sobre o número de brasileiros que adquirem malária em viagens à África, mas no Instituto de Pesquisas Clínicas Evandro Chagas (IPEC/Fiocruz), onde funciona o Serviço de Referência do Viajante com Febre, da Fiocruz, são diagnosticados e tratados cerca de 20% dos casos de malária do Município do Rio de Janeiro. Ali, tem sido atendido um número crescente de viajantes brasileiros infectados, geralmente pela primeira vez, em deslocamentos realizados ao continente africano. Os casos são, em sua totalidade, de malária por P. falciparum, e, portanto, malária potencialmente grave, quando não diagnosticada e tratada nas primeiras 48 horas do início do quadro. Usualmente, febre e dor de cabeça surgem como único sinal e sintoma. O atraso no diagnóstico e tratamento pode resultar em complicações no cérebro, pulmões, rins, células do sangue e levar à morte. Assim, um dos desafios, também no Brasil, hoje, é a chamada malária do viajante, problema que impulsionou a pesquisa em malária nos Estados Unidos depois da Guerra do Vietnã, durante a qual um número expressivo de soldados morreram acometidos pela doença.



Embora muitas equipes venham trabalhando em seu desenvolvimento em vários centros de pesquisa no mundo, não existe ainda uma vacina contra a malária. Como a doença é transmitida pela picada da fêmea do mosquito Anopheles, evitar o contato com o vetor corresponde à forma mais eficaz de prevenir a infecção e a doença. Na Ásia e na África, o uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas piretróides tem se mostrado uma estratégia utilizável mesmo em populações desprovidas de recursos e reduziu a prevalência e a gravidade da doença em localidades onde estudos controlados têm sido realizados. Pesquisas semelhantes conduzidas na Amazônia brasileira mostraram resultados promissores, como a diminuição da densidade vetorial no intra-domicílio. Um estudo com sete mil mosquiteiros em populações acreanas mostrou redução da malária e outro com setenta mil no Vale do Juruá e de Sena Madureira apontou no sentido de efeitos protetores mais marcados contra a malária por P. falciparum em crianças e mulheres, grupos em que a doença costuma ser mais grave. Como resultado, um projeto financiado pelo Fundo Global analisará o impacto do uso de 1.100.000 mosquiteiros impregnados em 47 municípios de seis estados da Amazônia Brasileira (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima).

O uso de roupas fechadas e impregnadas com permetrina ou deltametrina, a aplicação de repelentes sobre as partes expostas do corpo (DEET até 10% para crianças e 50% para adultos) e o cuidado de hospedar-se em locais com ar condicionado ou telas protetoras podem ter bastante impacto como medidas profiláticas no nível individual e são aconselhados para viajantes. Infelizmente, para os residentes das áreas endêmicas estas medidas não parecem muito adequadas.

O uso de medicação não impede a infecção, mas interrompe a multiplicação do parasito no sangue, o que pode evitar ou adiar o aparecimento das manifestações clínicas da doença e ser útil em locais inacessíveis aos serviços de saúde, o que é raro no Brasil. O uso desta medicação que depende do grau do risco de exposição, das espécies predominantes nas áreas e seu perfil de resistência às drogas antimaláricas comumente utilizadas, bem como do risco de efeitos adversos deve ser avaliado e, se justificado, prescrito somente por médicos especializados dos Centros de Informação e Atendimento de Viajantes.

Em grandes centros urbanos, onde não há transmissão de malária, apesar da disponibilidade de recursos técnicos e diagnósticos, a malária é comumente confundida com outras doenças, atrasando o diagnóstico e, portanto o início do tratamento. A experiência e capacitação para o diagnóstico clínico e laboratorial e a abordagem terapêutica da malária não são uniformes em áreas não-endêmicas. Na casuística no Rio de Janeiro, por exemplo, todos os pacientes com malária que tiveram ao menos uma passagem prévia por algum Serviço de Saúde, no âmbito do SUS ou de clínicas privadas, haviam recebido o diagnóstico de dengue, levando ao atraso no diagnóstico e no tratamento específico da malária. Há, portanto, a necessidade de divulgação da informação, para profissionais da área de saúde, sobre o risco do não reconhecimento dos casos de malária contraídos após viagens, cada vez mais comuns em áreas de transmissão.

Antes do deslocamento, o viajante deve ser informado e sensibilizado para a importância de utilizar medidas de proteção durante a estadia em área de transmissão. Em grande parte das capitais da região Extra-Amazônica do país, há Centros de Aconselhamento para Viajantes, onde consultas médicas podem ser agendadas previamente a fim de que o risco de adquirir malária ou outras doenças seja avaliado e reduzido. As estratégias de proteção são baseadas nas características do deslocamento e no risco individual. Se a viagem for planejada, as medidas podem ser otimizadas. O viajante deve ser instruído, sobretudo, a procurar mandatoriamente Serviços Especializados de Diagnóstico e Atendimento de Malária na presença de qualquer forma de febre posterior à viagem, independentemente do tempo decorrido após o retorno da área de transmissão (há casos de aparecimento de sintomas meses após a viagem) e não obstante a utilização de todas as medidas de proteção durante a viagem, inclusive de medicação.

Nas áreas de maior endemicidade no Brasil, o diagnóstico costuma acontecer com mais facilidade, em função de cerca de 60% das pessoas procurarem os postos de diagnóstico com menos de dois dias de febre. Entretanto, se, por um lado, o grande número de exames realizados diariamente mantém os microscopistas das áreas endêmicas mais capacitados para o diagnóstico e os médicos habituados a evocar o diagnóstico, por outro, a população banaliza o diagnóstico da doença e muitas vezes não segue o tratamento de forma correta, sobretudo porque o P. vivax, espécie predominante no país, cursa habitualmente sem complicações. Paradoxalmente, o número decrescente de mortes por malária no Brasil faz com que os governantes e a própria população não tomem medidas mais drásticas em relação ao controle mais eficaz.

A malária é uma emergência médica. A partir do momento do diagnóstico, o tratamento específico deve ser instituído imediatamente. Para isso, é importante a confirmação da espécie de Plasmodium causador da infecção por um microscopista com experiência na área. Como a letalidade e a gravidade dos casos são maiores nas áreas sem transmissão (justamente em função do habitual atraso no diagnóstico e tratamento), é importante que o acesso ao tratamento seja simplificado e descentralizado, sobretudo as formas parenterais das medicações para tratamento da malária por P. falciparum, a mais grave. Uma importante ferramenta na abordagem da malária do viajante tem sido o uso de testes rápidos, que dispensam microscopistas bem treinados e podem ser realizados por praticamente qualquer pessoa.

Nas áreas endêmicas, o diagnóstico pode ser feito em um número grande de postos (quase 49.000 na Amazônia), que se integram ao Sistema Único de Saúde e ao Programa de Saúde da Família. Diagnóstico e tratamento são realizados rotineiramente por técnicos e agentes de saúde e apenas os casos mais complicados devem ser encaminhados às unidades de referência, com destaque para a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, em Manaus (AM), e o Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA).

A malária ainda é uma doença importante no cenário internacional, tendo se restringido às áreas mais tropicais e mais pobres do planeta nas últimas décadas, quando comparado ao cenário mais difuso da doença dos últimos dois milênios. Os desafios atuais são diferentes. Se ontem não dispúnhamos de ferramentas de controle adequadas, hoje precisamos dar acesso às populações acometidas aos mosquiteiros impregnados, aos testes rápidos de diagnóstico e às novas drogas disponíveis para os parasitos resistentes. Em um momento em que se re-discute a possibilidade de erradicação da malária no planeta, a malária de mais difícil controle é aquela produzida pelo P. vivax, parasito sobre o qual sabemos menos. Em áreas onde o P. falciparum foi controlado, como no Brasil, onde responde por pouco mais de 15% dos casos notificados, a permanência de P. vivax pode ser o grande desafio do controle da doença para esse próximo milênio.

Leitura recomendada:

1) Oliveira-Ferreira J, Lacerda MVG, Brasil P, Ladislau JLB, Tauil PL & Daniel-Ribeiro CT. 2010. Malaria in Brazil: an overview. Malaria Journal 9, 115.

2) Cohen J. Origin of most deadly human malaria comes out of the mist. News of the week, Parasitology. Science 329, 1586-7. 24/09/2010. www.sciencemag.org.

3) Singh B, Kim Sung L, Matusop A, Radhakrishnan A, Shamsul SSG, Cox-Singh J, Thomas A & Conway DJ. 2004. A large focus of naturally acquired Plasmodium knowlesi infections in human beings. Lancet 363:101724.

4) Webb Jr JLA. Humanity\'s Burden: A Global History of Malaria. Cambridge University Press. Bew York. 2009.

* Médicos, Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

** Médico, Pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, Manaus

23/12/10



Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)