O papel das instituições científicas no Brasil, em torno de questões estruturais como financiamento e autonomia até a resposta à pandemia de Covid-19, foi o tema da última sessão do Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), realizada no dia 15 de outubro. A sessão “Universidades e Institutos de Pesquisa: momento atual e perspectivas de futuro” contou com a participação da presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade Lima; do professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Sergio Machado Rezende; da reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Soraya Smaili; e do reitor da Universidade de São Paulo (USP), Vahan Agopyan.
Em sentido horário: Sergio Machado Rezende, Renato Cordeiro, Vahan Agopyan, José Paulo Gagliardi Leite, Nísia Trindade Lima e Soraya Smaili. Foto: ReproduçãoO encontro homenageou os 120 anos do IOC e da Fiocruz e o dia do professor. O evento foi transmitido pelo canal do IOC no YouTube (confira aqui). Na abertura da sessão, o coordenador da iniciativa, Renato Cordeiro, destacou a contribuição de universidades e institutos de pesquisa para a construção do país e para o enfrentamento da Covid-19. O pesquisador emérito da Fiocruz avaliou que a suspensão de concursos e a previsão de cortes no orçamento ameaçam o avanço da ciência no Brasil.
“Para 2021, os recursos discricionários do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações serão de apenas R$ 2,7 bilhões, ou seja, 34% menores do que em 2020. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] tem previsão de apenas R$ 22 milhões para fomento à pesquisa. O orçamento da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] vai ficar 28% abaixo de 2019. O impacto negativo ocorrerá ainda com o corte de 17,5% das despesas discricionárias de universidades e institutos federais, assim como de 45% nas verbas para pesquisa e inovação da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]. Temos ainda o absurdo contingenciamento de recursos do FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], que causa grande prejuízo à inovação no país e ao programa dos INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia]”, enumerou Renato.
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, enfatizou a importância da relação entre a ciência e a democracia e afirmou que a pandemia evidenciou o papel e os desafios da ciência, assim como sua relação com a sociedade. De acordo com a pesquisadora, a emergência de saúde pública é marcada por vulnerabilidades de conhecimento, econômicas e sociais. Em relação ao conhecimento, as vulnerabilidades não se restringem às lacunas que ainda existem na virologia, imunologia e epidemiologia e outras áreas. No contexto da sociedade da informação, a circulação de dados passa a constituir a epidemia e coloca o desafio da comunicação em tempo real, que se relaciona com a circulação de notícias falsas e as desigualdades.
Para Nísia, os sistemas de saúde e a ciência constituíram elementos de força no enfrentamento da Covid-19. Foto: ReproduçãoEntre diversas ações da Fiocruz na emergência, a presidente destacou a atuação do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do IOC, que atua como referência no diagnóstico do coronavírus no Brasil junto ao Ministério da Saúde e na região das Américas junto à Organização Mundial da Saúde (OMS). Nísia também citou a parceria estabelecida entre o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e a farmacêutica AstraZeneca para a produção da vacina de Oxford e, ainda, lembrou a importante construção do Centro Hospitalar para a Pandemia de Covid-19 do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
Ressaltando que os sistemas de saúde e a ciência constituíram elementos de força no enfrentamento da pandemia, a presidente da Fiocruz apontou que o fortalecimento das instituições de ciência e tecnologia deve considerar sete desafios. São eles: ambiental, demográfico, de persistência de desigualdades, da biotecnologia, das novas tecnologias da informação, comunicação e das mudanças no mundo do trabalho e da crise da democracia, que se coloca como fator central, influindo sobre todos os demais.
Destacando o papel fundamental da ciência para o desenvolvimento econômico, o aumento das riquezas e a soberania das nações, o professor da UFPE, presidente de honra da SBPC e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Machado Rezende, discutiu conquistas históricas e desafios para o futuro da área no Brasil. Apesar da estruturação do setor, ele avaliou que o país construiu um sistema extenso e qualificado.
A criação das agências de fomento CNPq e Capes, em 1951; a reforma universitária, que institucionalizou a pós-graduação, em 1968; o estabelecimento do fundo para financiamento da ciência e tecnologia FNDCT, em 1971; e a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, em 1985, foram citados como marcos da estruturação da área. No entanto, Sérgio ressaltou a inconstância nas políticas públicas, que atribuiu à “ausência de uma política de estado para a ciência e tecnologia”. Como exemplo, ele citou que, por duas vezes, Ministério da Ciência e Tecnologia foi extinto e recriado, durante os governos de José Sarney, o mesmo que havia iniciado a pasta, e Fernando Collor.
Sérgio destacou a relevância da mobilização da comunidade científica junto ao Congresso Nacional para garantir recursos. Foto: ReproduçãoO professor apontou também as oscilações do orçamento disponível para a pesquisa científica. Entre 1980 e 1990, a execução do FNDCT variou entre menos de R$ 200 milhões e mais de R$ 800 milhões ao ano. No final dos anos 1990, elevou-se o montante de recursos disponíveis para o financiamento da área, com a criação dos fundos setoriais, vinculados ao FNDTC, no governo Fernando Henrique Cardoso. No entanto, os contingenciamentos passaram a ser um entrave. A redução progressiva desta forma de retenção de recursos durante o governo Luís Inácio Lula da Silva permitiu a execução de R$ 5 bilhões do FNDCT em 2010. Porém, a partir de 2011, os contingenciamentos voltaram, acentuando-se após 2014, nos governos de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Em 2020, 88% dos recursos do FNDCT foram contingenciados, restando apenas R$ 600 milhões para investimento em ciência e tecnologia. “Em moeda corrente, esse valor equivale ao de 40 anos atrás, só que a comunidade científica atual é cerca de 50 vezes maior. O orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia também vem caindo e estamos hoje numa situação pior do que há 20 anos”, afirmou Sérgio, citando ainda cortes de bolsas da Capes e do CNPq. O professor enfatizou a importância da mobilização da comunidade científica junto ao Congresso Nacional para tentar garantir recursos para 2021. “O maior desafio para o Brasil é ter políticas de Estado, executadas com continuidade e aperfeiçoamento nas mudanças de governo”, concluiu.
A atuação da Unifesp na pandemia de Covid-19 foi detalhada pela reitora da Universidade, Soarya Smaili. Um dos quatro centros de referência para a Covid-19 na capital paulista, o Hospital São Paulo, vinculado à Universidade, realizou mais de mil internações e mais de dez mil atendimentos ambulatoriais relacionados à doença desde o começo da emergência de saúde pública. Segundo a reitora, em junho, a ocupação dos leitos chegou perto de 100%.
“Conseguimos reorganizar nosso sistema de internação e contratar profissionais temporários para o atendimento aos pacientes, trabalhadores, estudantes e residentes, que também adoeceram. Foi um período desafiador e, por vezes, dramático, em que tivemos ainda perdas entre os profissionais”, contou Soraya, acrescentando que as doações foram fundamentais para a compra de equipamentos.
Soraya enfatizou que resposta da Unifesp ao coronavírus passou pela assistência, pesquisa e ensino. Foto: ReproduçãoAssim como na assistência, a Unifesp direcionou atividades de pesquisa para a Covid-19. Foram mais de 230 projetos iniciados nos últimos seis meses envolvendo seres humanos, além de estudos experimentais e nas áreas de ciências humanas e sociais. Soraya enfatizou a aplicação das evidências científicas na resposta à pandemia, citando estudos diversos que abordam desde as desigualdades e vulnerabilidades na cidade de São Paulo ao uso da heparina no tratamento de pacientes internados. Além disso, a reitora apontou a atuação da Unifesp na coordenação do ensaio clínico de fase 3 da vacina de Oxford no Brasil e no grupo Coalizão Covid-19 Brasil, que realiza ensaios clínicos de medicamentos para tratamento da doença.
As atividades de ensino também tiveram que ser reorganizadas. Suspensas em março, as aulas foram retomadas, digitalmente, a partir de julho. Segundo Soraya, além do treinamento dos professores, a Unifesp precisou oferecer empréstimo de computadores e auxílio para acesso à internet a muitos estudantes. A instituição concedeu ainda auxílio estudantil emergencial para alunos de família em vulnerabilidade. “Nossa Universidade tem 50% de cotistas e 70% dos estudantes são de famílias com renda abaixo de três salários mínimos. Muitas ficaram em condições de altíssima vulnerabilidade”, pontuou a reitora.
Em um cenário de grande incerteza, a professora chamou atenção para a queda dos investimentos em ciência e tecnologia e na saúde no país. “Se não revertermos os cortes previstos para 2021, teremos perda de R$ 35 bilhões para o Ministério da Saúde e de R$ 1,8 bilhão para o Ministério da Educação, com redução de 16,5% nos recursos para as IFES [Instituições de Ensino Superior]”, salientou Soraya.
O reitor da USP, Vahan Agopyan, avaliou que a resposta das universidades e institutos de pesquisa à pandemia demonstrou seu compromisso com a solução dos problemas da sociedade e aproximou essas instituições da população. Na atuação da USP, ele destacou o esforço para reduzir os prejuízos ao calendário acadêmico, com a participação de mais de quatro mil docentes em cursos de formação para o ensino remoto.
Cerca de duas semanas após a suspensão das aulas presenciais, 90% das disciplinas passaram a ser oferecidas online. A previsão da instituição é concluir as disciplinas teóricas do segundo semestre em dezembro e realizar as aulas práticas e de campo de janeiro a março. “Nosso primeiro compromisso foi de não frustrar nossos alunos e de permitir que a sociedade tenha, no fim desse ano, o mesmo número de excelentes profissionais que formamos nos anos anteriores e possa dispor desses profissionais para enfrentar a situação pós-Covid-19”, disse o reitor.
Para Vahan, ferramentas digitais, interdisciplinaridade e interação próxima com a sociedade devem permanecer após pandemia. Foto: ReproduçãoVahan ressaltou também a intensa produção científica da USP em diversas áreas do conhecimento, incluindo, por exemplo, o sequenciamento genético do coronavírus e a criação de modelos matemáticos para estudo da epidemia, e o desenvolvimento de inovações tecnológicas para o enfrentamento da pandemia, como a criação de respiradores de baixo custo. Além disso, enfatizou o papel da instituição na disseminação de informações. “A sociedade compreendeu que a universidade é uma fonte fidedigna de informações. Durante a pandemia, os acessos ao Jornal da USP quintuplicaram, passando de dezenas de milhares a um milhão, em alguns casos”, pontuou.
Considerando as perspectivas para o futuro, o reitor da USP defendeu que “2021 não pode ser a volta de 2019”. Vahan afirmou que a convivência dos alunos no ambiente de pesquisa é fundamental para a formação universitária, mas considerou que as ferramentas tecnológicas devem contribuir para a melhoria do ensino após a pandemia. “Hoje, a maioria das nossas bancas já tem participação de professores do exterior, porque as defesas são virtuais. Será que isso não deve ser uma rotina?”, interrogou.
Outras transformações apontadas pelo reitor foram o aumento da interdisciplinaridade, a maior interação com a sociedade e o surgimento da filantropia. “Antes da pandemia, recebíamos recursos da iniciativa privada para estudos específicos, do interesse das empresas. Porém, com a pandemia, recebemos recursos consideráveis como doações. Mudou o comportamento da sociedade nesse sentido”, ponderou Vahan.
No debate realizado após as palestras, o coordenador do Núcleo de Estudos Avançados do IOC, Renato Cordeiro, apontou a possibilidade de diáspora de jovens pesquisadores devido à falta de concursos e de verbas para ciência e tecnologia no país. Ele também levantou questões sobre os caminhos para viabilizar a expansão de doações para universidades e institutos de pesquisa e sobre a possibilidade de contingenciamento de recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em 2021.
O reitor da USP relatou que há grande mobilização para que o projeto de lei que permite a desvinculação de 30% dos recursos da Fapesp não seja aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Vahan Agopyan enfatizou a importância da autonomia orçamentária da Fundação e das universidades paulistas, estabelecidas na Constituição estadual. “Não se pode ter ensino, ciência e pesquisa, sem planejamento de longo prazo. Na USP, o orçamento anual tem que ser aprovado junto com o orçamento plurianual. No mundo todo, as universidades são autônomas, não é um privilégio das instituições paulistas”, declarou.
A mobilização das instituições científicas do Nordeste foi destacada por Sérgio Machado Rezende. “O Comitê Científico do Nordeste apoia os governadores da região. As fundações de apoio à pesquisa dos nove estados se juntaram e fizeram editais articulados. Por isso, temos projetos de cooperação entre vários estados”, apontou o professor da UFPE e ex-ministro da Ciência e Tecnologia.
A iniciativa foi elogiada pela reitora da Unifesp, que ponderou sobre o potencial de um consórcio para divulgação das ações das universidades. Soraya Smaili comentou ainda os entraves para o recebimento de doações. “As doações diminuíram muito e a gente continua precisando desse apoio da sociedade e das empresas. Atualmente, a lei não dá isenção para os doadores e existem alguns mecanismos para viabilizar o recebimento de recursos que as procuradorias não permitem. Este ano, conseguimos alguns caminhos a partir do decreto de pandemia, que tem prazo de validade”, alertou a professora.
A presidente da Fiocruz salientou que, mesmo em um cenário de redução de casos, ainda deve haver circulação do vírus e as consequências da pandemia continuaram sendo sentidas no próximo ano. Por esse motivo, a possibilidade de prorrogar o decreto de pandemia está em discussão no Congresso. “Precisamos de mais estado e de mais sociedade. Seria importante fazer uma pesquisa sobre a sensibilização do setor empresarial e de outras organizações da sociedade para as doações. Durante a pandemia, recebemos cerca de R$ 380 milhões de recursos privados, envolvendo inclusive os times de futebol do Rio de Janeiro, que se uniram apoiando a Fiocruz”, citou Nísia Trindade Lima.
O encerramento do debate foi feito pelo diretor do IOC, José Paulo Gagliardi Leite. Além de reforçar a importância da mobilização da comunidade científica pela disponibilidade de recursos, em especial pela liberação do FNDCT, o pesquisador ressaltou a necessidade de enfrentamento das desigualdades. “Nosso país tem desigualdades marcantes que se refletem no acesso à internet. Precisamos de uma política inclusiva de acesso à rede e teremos que trabalhar muito para que as atividades não presenciais não aumentem o abismo social do Brasil”, apontou José Paulo.
O papel das instituições científicas no Brasil, em torno de questões estruturais como financiamento e autonomia até a resposta à pandemia de Covid-19, foi o tema da última sessão do Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), realizada no dia 15 de outubro. A sessão “Universidades e Institutos de Pesquisa: momento atual e perspectivas de futuro” contou com a participação da presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade Lima; do professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Sergio Machado Rezende; da reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Soraya Smaili; e do reitor da Universidade de São Paulo (USP), Vahan Agopyan.
Em sentido horário: Sergio Machado Rezende, Renato Cordeiro, Vahan Agopyan, José Paulo Gagliardi Leite, Nísia Trindade Lima e Soraya Smaili. Foto: ReproduçãoO encontro homenageou os 120 anos do IOC e da Fiocruz e o dia do professor. O evento foi transmitido pelo canal do IOC no YouTube (confira aqui). Na abertura da sessão, o coordenador da iniciativa, Renato Cordeiro, destacou a contribuição de universidades e institutos de pesquisa para a construção do país e para o enfrentamento da Covid-19. O pesquisador emérito da Fiocruz avaliou que a suspensão de concursos e a previsão de cortes no orçamento ameaçam o avanço da ciência no Brasil.
“Para 2021, os recursos discricionários do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações serão de apenas R$ 2,7 bilhões, ou seja, 34% menores do que em 2020. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] tem previsão de apenas R$ 22 milhões para fomento à pesquisa. O orçamento da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] vai ficar 28% abaixo de 2019. O impacto negativo ocorrerá ainda com o corte de 17,5% das despesas discricionárias de universidades e institutos federais, assim como de 45% nas verbas para pesquisa e inovação da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]. Temos ainda o absurdo contingenciamento de recursos do FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], que causa grande prejuízo à inovação no país e ao programa dos INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia]”, enumerou Renato.
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, enfatizou a importância da relação entre a ciência e a democracia e afirmou que a pandemia evidenciou o papel e os desafios da ciência, assim como sua relação com a sociedade. De acordo com a pesquisadora, a emergência de saúde pública é marcada por vulnerabilidades de conhecimento, econômicas e sociais. Em relação ao conhecimento, as vulnerabilidades não se restringem às lacunas que ainda existem na virologia, imunologia e epidemiologia e outras áreas. No contexto da sociedade da informação, a circulação de dados passa a constituir a epidemia e coloca o desafio da comunicação em tempo real, que se relaciona com a circulação de notícias falsas e as desigualdades.
Para Nísia, os sistemas de saúde e a ciência constituíram elementos de força no enfrentamento da Covid-19. Foto: ReproduçãoEntre diversas ações da Fiocruz na emergência, a presidente destacou a atuação do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do IOC, que atua como referência no diagnóstico do coronavírus no Brasil junto ao Ministério da Saúde e na região das Américas junto à Organização Mundial da Saúde (OMS). Nísia também citou a parceria estabelecida entre o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e a farmacêutica AstraZeneca para a produção da vacina de Oxford e, ainda, lembrou a importante construção do Centro Hospitalar para a Pandemia de Covid-19 do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz).
Ressaltando que os sistemas de saúde e a ciência constituíram elementos de força no enfrentamento da pandemia, a presidente da Fiocruz apontou que o fortalecimento das instituições de ciência e tecnologia deve considerar sete desafios. São eles: ambiental, demográfico, de persistência de desigualdades, da biotecnologia, das novas tecnologias da informação, comunicação e das mudanças no mundo do trabalho e da crise da democracia, que se coloca como fator central, influindo sobre todos os demais.
Destacando o papel fundamental da ciência para o desenvolvimento econômico, o aumento das riquezas e a soberania das nações, o professor da UFPE, presidente de honra da SBPC e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Machado Rezende, discutiu conquistas históricas e desafios para o futuro da área no Brasil. Apesar da estruturação do setor, ele avaliou que o país construiu um sistema extenso e qualificado.
A criação das agências de fomento CNPq e Capes, em 1951; a reforma universitária, que institucionalizou a pós-graduação, em 1968; o estabelecimento do fundo para financiamento da ciência e tecnologia FNDCT, em 1971; e a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia, em 1985, foram citados como marcos da estruturação da área. No entanto, Sérgio ressaltou a inconstância nas políticas públicas, que atribuiu à “ausência de uma política de estado para a ciência e tecnologia”. Como exemplo, ele citou que, por duas vezes, Ministério da Ciência e Tecnologia foi extinto e recriado, durante os governos de José Sarney, o mesmo que havia iniciado a pasta, e Fernando Collor.
Sérgio destacou a relevância da mobilização da comunidade científica junto ao Congresso Nacional para garantir recursos. Foto: ReproduçãoO professor apontou também as oscilações do orçamento disponível para a pesquisa científica. Entre 1980 e 1990, a execução do FNDCT variou entre menos de R$ 200 milhões e mais de R$ 800 milhões ao ano. No final dos anos 1990, elevou-se o montante de recursos disponíveis para o financiamento da área, com a criação dos fundos setoriais, vinculados ao FNDTC, no governo Fernando Henrique Cardoso. No entanto, os contingenciamentos passaram a ser um entrave. A redução progressiva desta forma de retenção de recursos durante o governo Luís Inácio Lula da Silva permitiu a execução de R$ 5 bilhões do FNDCT em 2010. Porém, a partir de 2011, os contingenciamentos voltaram, acentuando-se após 2014, nos governos de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Em 2020, 88% dos recursos do FNDCT foram contingenciados, restando apenas R$ 600 milhões para investimento em ciência e tecnologia. “Em moeda corrente, esse valor equivale ao de 40 anos atrás, só que a comunidade científica atual é cerca de 50 vezes maior. O orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia também vem caindo e estamos hoje numa situação pior do que há 20 anos”, afirmou Sérgio, citando ainda cortes de bolsas da Capes e do CNPq. O professor enfatizou a importância da mobilização da comunidade científica junto ao Congresso Nacional para tentar garantir recursos para 2021. “O maior desafio para o Brasil é ter políticas de Estado, executadas com continuidade e aperfeiçoamento nas mudanças de governo”, concluiu.
A atuação da Unifesp na pandemia de Covid-19 foi detalhada pela reitora da Universidade, Soarya Smaili. Um dos quatro centros de referência para a Covid-19 na capital paulista, o Hospital São Paulo, vinculado à Universidade, realizou mais de mil internações e mais de dez mil atendimentos ambulatoriais relacionados à doença desde o começo da emergência de saúde pública. Segundo a reitora, em junho, a ocupação dos leitos chegou perto de 100%.
“Conseguimos reorganizar nosso sistema de internação e contratar profissionais temporários para o atendimento aos pacientes, trabalhadores, estudantes e residentes, que também adoeceram. Foi um período desafiador e, por vezes, dramático, em que tivemos ainda perdas entre os profissionais”, contou Soraya, acrescentando que as doações foram fundamentais para a compra de equipamentos.
Soraya enfatizou que resposta da Unifesp ao coronavírus passou pela assistência, pesquisa e ensino. Foto: ReproduçãoAssim como na assistência, a Unifesp direcionou atividades de pesquisa para a Covid-19. Foram mais de 230 projetos iniciados nos últimos seis meses envolvendo seres humanos, além de estudos experimentais e nas áreas de ciências humanas e sociais. Soraya enfatizou a aplicação das evidências científicas na resposta à pandemia, citando estudos diversos que abordam desde as desigualdades e vulnerabilidades na cidade de São Paulo ao uso da heparina no tratamento de pacientes internados. Além disso, a reitora apontou a atuação da Unifesp na coordenação do ensaio clínico de fase 3 da vacina de Oxford no Brasil e no grupo Coalizão Covid-19 Brasil, que realiza ensaios clínicos de medicamentos para tratamento da doença.
As atividades de ensino também tiveram que ser reorganizadas. Suspensas em março, as aulas foram retomadas, digitalmente, a partir de julho. Segundo Soraya, além do treinamento dos professores, a Unifesp precisou oferecer empréstimo de computadores e auxílio para acesso à internet a muitos estudantes. A instituição concedeu ainda auxílio estudantil emergencial para alunos de família em vulnerabilidade. “Nossa Universidade tem 50% de cotistas e 70% dos estudantes são de famílias com renda abaixo de três salários mínimos. Muitas ficaram em condições de altíssima vulnerabilidade”, pontuou a reitora.
Em um cenário de grande incerteza, a professora chamou atenção para a queda dos investimentos em ciência e tecnologia e na saúde no país. “Se não revertermos os cortes previstos para 2021, teremos perda de R$ 35 bilhões para o Ministério da Saúde e de R$ 1,8 bilhão para o Ministério da Educação, com redução de 16,5% nos recursos para as IFES [Instituições de Ensino Superior]”, salientou Soraya.
O reitor da USP, Vahan Agopyan, avaliou que a resposta das universidades e institutos de pesquisa à pandemia demonstrou seu compromisso com a solução dos problemas da sociedade e aproximou essas instituições da população. Na atuação da USP, ele destacou o esforço para reduzir os prejuízos ao calendário acadêmico, com a participação de mais de quatro mil docentes em cursos de formação para o ensino remoto.
Cerca de duas semanas após a suspensão das aulas presenciais, 90% das disciplinas passaram a ser oferecidas online. A previsão da instituição é concluir as disciplinas teóricas do segundo semestre em dezembro e realizar as aulas práticas e de campo de janeiro a março. “Nosso primeiro compromisso foi de não frustrar nossos alunos e de permitir que a sociedade tenha, no fim desse ano, o mesmo número de excelentes profissionais que formamos nos anos anteriores e possa dispor desses profissionais para enfrentar a situação pós-Covid-19”, disse o reitor.
Para Vahan, ferramentas digitais, interdisciplinaridade e interação próxima com a sociedade devem permanecer após pandemia. Foto: ReproduçãoVahan ressaltou também a intensa produção científica da USP em diversas áreas do conhecimento, incluindo, por exemplo, o sequenciamento genético do coronavírus e a criação de modelos matemáticos para estudo da epidemia, e o desenvolvimento de inovações tecnológicas para o enfrentamento da pandemia, como a criação de respiradores de baixo custo. Além disso, enfatizou o papel da instituição na disseminação de informações. “A sociedade compreendeu que a universidade é uma fonte fidedigna de informações. Durante a pandemia, os acessos ao Jornal da USP quintuplicaram, passando de dezenas de milhares a um milhão, em alguns casos”, pontuou.
Considerando as perspectivas para o futuro, o reitor da USP defendeu que “2021 não pode ser a volta de 2019”. Vahan afirmou que a convivência dos alunos no ambiente de pesquisa é fundamental para a formação universitária, mas considerou que as ferramentas tecnológicas devem contribuir para a melhoria do ensino após a pandemia. “Hoje, a maioria das nossas bancas já tem participação de professores do exterior, porque as defesas são virtuais. Será que isso não deve ser uma rotina?”, interrogou.
Outras transformações apontadas pelo reitor foram o aumento da interdisciplinaridade, a maior interação com a sociedade e o surgimento da filantropia. “Antes da pandemia, recebíamos recursos da iniciativa privada para estudos específicos, do interesse das empresas. Porém, com a pandemia, recebemos recursos consideráveis como doações. Mudou o comportamento da sociedade nesse sentido”, ponderou Vahan.
No debate realizado após as palestras, o coordenador do Núcleo de Estudos Avançados do IOC, Renato Cordeiro, apontou a possibilidade de diáspora de jovens pesquisadores devido à falta de concursos e de verbas para ciência e tecnologia no país. Ele também levantou questões sobre os caminhos para viabilizar a expansão de doações para universidades e institutos de pesquisa e sobre a possibilidade de contingenciamento de recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em 2021.
O reitor da USP relatou que há grande mobilização para que o projeto de lei que permite a desvinculação de 30% dos recursos da Fapesp não seja aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Vahan Agopyan enfatizou a importância da autonomia orçamentária da Fundação e das universidades paulistas, estabelecidas na Constituição estadual. “Não se pode ter ensino, ciência e pesquisa, sem planejamento de longo prazo. Na USP, o orçamento anual tem que ser aprovado junto com o orçamento plurianual. No mundo todo, as universidades são autônomas, não é um privilégio das instituições paulistas”, declarou.
A mobilização das instituições científicas do Nordeste foi destacada por Sérgio Machado Rezende. “O Comitê Científico do Nordeste apoia os governadores da região. As fundações de apoio à pesquisa dos nove estados se juntaram e fizeram editais articulados. Por isso, temos projetos de cooperação entre vários estados”, apontou o professor da UFPE e ex-ministro da Ciência e Tecnologia.
A iniciativa foi elogiada pela reitora da Unifesp, que ponderou sobre o potencial de um consórcio para divulgação das ações das universidades. Soraya Smaili comentou ainda os entraves para o recebimento de doações. “As doações diminuíram muito e a gente continua precisando desse apoio da sociedade e das empresas. Atualmente, a lei não dá isenção para os doadores e existem alguns mecanismos para viabilizar o recebimento de recursos que as procuradorias não permitem. Este ano, conseguimos alguns caminhos a partir do decreto de pandemia, que tem prazo de validade”, alertou a professora.
A presidente da Fiocruz salientou que, mesmo em um cenário de redução de casos, ainda deve haver circulação do vírus e as consequências da pandemia continuaram sendo sentidas no próximo ano. Por esse motivo, a possibilidade de prorrogar o decreto de pandemia está em discussão no Congresso. “Precisamos de mais estado e de mais sociedade. Seria importante fazer uma pesquisa sobre a sensibilização do setor empresarial e de outras organizações da sociedade para as doações. Durante a pandemia, recebemos cerca de R$ 380 milhões de recursos privados, envolvendo inclusive os times de futebol do Rio de Janeiro, que se uniram apoiando a Fiocruz”, citou Nísia Trindade Lima.
O encerramento do debate foi feito pelo diretor do IOC, José Paulo Gagliardi Leite. Além de reforçar a importância da mobilização da comunidade científica pela disponibilidade de recursos, em especial pela liberação do FNDCT, o pesquisador ressaltou a necessidade de enfrentamento das desigualdades. “Nosso país tem desigualdades marcantes que se refletem no acesso à internet. Precisamos de uma política inclusiva de acesso à rede e teremos que trabalhar muito para que as atividades não presenciais não aumentem o abismo social do Brasil”, apontou José Paulo.
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)