Testemunha e protagonista da evolução na publicação científica. É assim que a revista Memórias dos Instituto Oswaldo Cruz chega ao marco de 115 anos.
Fundado por Oswaldo Cruz com o objetivo de divulgar as pesquisas realizadas no ‘Instituto de Manguinhos’, como era carinhosamente chamado o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), o periódico circulou pela primeira vez em abril de 1909.
Atravessando mais de um século, mantém-se entre as mais relevantes publicações científicas sobre doenças infecciosas, especialmente nos campos da medicina tropical e parasitologia.
Artigo que detalhou o ciclo da doença de Chagas foi publicado em 'Memórias', em 1909, com texto em português e alemão. Imagens: Josué Damacena e Reprodução MemóriasEm linha com as melhores práticas de editoração, ‘Memórias’ é uma revista internacional de acesso aberto diamante, no qual não há cobrança de taxas nem para leitores, nem para autores.
O editor-chefe do periódico, Adeilton Brandão, ressalta que ‘Memórias’ está entre as poucas publicações científicas centenárias do Brasil.
“Esse é um momento para ser celebrado. A história das revistas científicas no Brasil demonstra que são poucas as que permaneceram em atividade por tanto tempo”, afirma o editor.
Ao todo, mais de 7 mil artigos foram publicados no periódico em 115 anos.
Em todo esse período, houve apenas três anos em que a revista não foi publicada, de 1977 a 1979, devido à crise institucional e falta de investimentos na Fiocruz após a cassação de dez pesquisadores do IOC pela ditadura militar no chamado ‘Massacre de Manguinhos’, que ocorreu em 1970.
Editor de ‘Memórias’ entre 1993 e 2001 e, posteriomente, editor do ‘Boletim da Organização Mundial de Saúde’, publicado pela OMS, Hooman Momen destaca o sentimento de orgulho pela trajetória do periódico.
“Mais que felicidade, é motivo de orgulho. Uma revista científica chegar aos 115 anos é difícil em qualquer lugar do mundo e ainda mais no Brasil. Ter uma revista com a tradição de ‘Memórias’, mantendo a qualidade, sem cobrar assinatura para quem lê, nem taxa para o autor que publica é um grande valor”, afirma Momen.
Sala no Castelo de Manguinhos abriga a editoria científica da revista até os dias atuais. Foto: Josué DamacenaA relevância da publicação para a ciência brasileira é reforçada por Ricardo Lourenço de Oliveira, que ocupou o cargo de editor-chefe do periódico de 2007 a 2015.
“No campo das doenças infecciosas, 'Memórias’ tem vertente multidisciplinar, reunindo estudos de parasitologia, biologia molecular, vetores, reservatórios e outros. Sendo o Brasil um país que ainda sofre muito com esses agravos, é importante que tenha uma revista desta categoria, para difundir a produção científica”, afirma Ricardo.
O pioneirismo da publicação, que foi uma das primeiras revistas biomédicas tradicionais a entrar no ambiente online e adotar os princípios da ciência aberta, é destacado por Claude Pirmez, que foi editora chefe entre 2015 e 2020.
“A revista foi criada num contexto histórico e ambiente acadêmico muito diferente do atual. É impressionante ver a evolução de histórica ‘Memórias’, se adaptando a conceitos acadêmicos e, na maior parte das vezes, à frente do seu tempo”, declara Claude.
No dia 10 de dezembro, os 115 anos da publicação serão homenageados no projeto Somos Manguinhos. A sessão vai reunir diversas gerações de editores, colaboradores e autores de artigos. O evento será realizado às 10h, no auditório Emmanuel Dias – Pavilhão Arthur Neiva (campus Fiocruz Manguinhos – Av. Brasil, 4.365).
Segundo historiadores, ao criar ‘Memórias’, Oswaldo Cruz inspirou-se em instituições científicas brasileiras e estrangeiras que publicavam revistas para divulgar suas pesquisas, incluindo o Instituto Pasteur, de Paris, onde o pesquisador brasileiro estudou e conheceu o periódico ‘Annales de l'Institut Pasteur’.
Capa do segundo volume da revista, publicado em agosto de 1909. Foto: Josué DamacenaA criação da revista visava à comunicação científica tanto no Brasil quanto no exterior. O decreto de dezembro de 1907, que instituiu a publicação, afirmava: “as Memórias serão distribuídas pelas escolas profissionais, de medicina, de veterinária e de agricultura, existentes no país, constituindo objeto de permuta com as publicações estrangeiras do mesmo gênero”.
Outro decreto, de março de 1908, orientava que os artigos poderiam ser apresentados em diferentes idiomas, devendo ter sempre uma versão em português.
Na primeira edição, em abril de 1909, todos os textos foram publicados em dois idiomas, com versões em português e alemão, francês ou inglês, com escolha da língua estrangeira a critério do autor.
“O Instituto tinha muita colaboração com pesquisadores da Alemanha, França e Estados Unidos. O canal oficial de comunicação científica se dava pela troca de revistas entre as bibliotecas. Mas havia também o canal individual, de relações entre pesquisadores, que podiam enviar a revista inteira ou artigos impressos separadamente para seus colegas mundo afora”, conta Adeilton.
Livro-tombo guardado no acervo de 'Memórias' registra todos os trabalhos submetidos e publicados na revista entre as décadas de 1920 e 1980. Foto: Gutemberg BritoNa época, não havia oficialmente cargo de editor de ‘Memórias’. A publicação do periódico ficava sob responsabilidade do diretor do IOC.
Depoimentos de pioneiros de Manguinhos, como Henrique Aragão e Ezequiel Dias, destacam a marca do empenho de Oswaldo Cruz na publicação da revista, o que incluiu a montagem de uma gráfica no Instituto.
“Como não houvesse, na época, no Instituto, quem pudesse cuidar do assunto [a implantação da revista], ele [Oswaldo Cruz] tomou a si todo o trabalho, desde a escolha das máquinas impressoras, seleção dos tipos, encomenda do papel, entendimentos com litógrafos e especialistas na feitura de clichês, a seleção dos tradutores para os artigos e, finalmente, ainda a revisão das provas, sem demonstrar, como de costume, o menor enfado por todo o labor rotineiro que tomara a si”, conta Aragão.
A segunda edição de ‘Memórias’, em agosto de 1909, trouxe um dos artigos mais emblemáticos da ciência brasileira. O pesquisador do IOC Carlos Chagas publicou no periódico o artigo que detalhou o ciclo completo da nova ‘tripanozomiaze humana’, infecção descoberta por ele em Minas Gerais, depois nomeada como doença de Chagas.
Além de narrar o passo a passo da descoberta – que elucidou, de uma só vez, o parasito, seu vetor e a doença causada por ele – o trabalho apresentou minuciosamente a morfologia e o ciclo evolutivo do protozoário Trypanosoma cruzi. O texto foi acompanhado por mais de cem ilustrações, produzidas por Manoel Castro Silva, primeiro desenhista de Manguinhos.
O artigo foi citado na edição de maio de 1910 do ‘Bulletin Mensuel de l’Office International d’Hygiène Publique’, publicação do organismo precursor da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O reconhecimento internacional das ‘Memórias’ se refletiu na indexação da publicação nos principais periódicos que compilavam a literatura científica da área no século XX, como Index Medicus, Biological Abstracts e Tropical Diseases Bulletin.
À esquerda, ilustrações de artigo de Adolpho Lutz sobre esquistossomose publicado em 1919. À direita, foto dos formandos do Curso de Aplicação do IOC publicada em artigo de 1929. Imagens: Reprodução Memórias'Memórias’ permaneceu como uma revista institucional de 1909 a 1979. Nesse período, refletiu a produção científica do IOC, revelando o trabalho de seus pesquisadores para enfrentar as grandes endemias do Brasil.
Um artigo que analisou o perfil de artigos publicados em ‘Memórias’ apontou os agravos mais frequentes ao longo dos anos. O levantamento foi liderado pelo Laboratório de Comunicação Celular do IOC e publicado em ‘Memórias’.
Considerando o período de 1909 a 1980, a doença de Chagas foi o agravo mais citado, seguido pela hanseníase. Febre amarela foi destaque nas primeiras décadas do periódico, enquanto malária ganhou atenção a partir dos anos 1930.
Com frequência variada ao longo do tempo, foram publicados estudos sobre esquistossomose, tuberculose, leishmanioses, verminoses, peste e outros agravos.
Além de resultados de pesquisas, o periódico abria espaço para relatos sobre atividades do IOC. O atual editor de ‘Memórias’ destaca documentos com valor histórico, como os relatórios sobre expedições científicas na Amazônia, no Centro-Oeste e no Sul do Brasil, assim como no Paraguai e na Bolívia.
À esquerda, fotos publicadas em artigo de Olympio da Fonseca, em 1929, sobre expedição de pesquisadores do IOC à Bolívia. À direita, ilustrações de trabalho de H. C. de Souza-Araújo sobre hanseníase publicado em 1929. Imagens: Reprodução Memórias“Na edição de 1929, há um relatório minucioso sobre o Curso de Aplicação do IOC, que treinava profissionais formados em faculdades de medicina, farmácia, veterinária e outras, como se fosse uma especialização. O artigo conta com depoimentos de alunos do curso e vemos que, nessa turma, havia duas mulheres, o que não era comum na época”, conta Adeilton.
Pesquisas que analisaram a trajetória de ‘Memórias’ apontam que a publicação se destacava no cenário editorial brasileiro. Um dos fatores que contribuíam para isso era a oferta de traduções, que se manteve para todos os artigos até 1915 e para alguns trabalhos em toda a fase institucional.
Além disso, a qualidade gráfica, com ilustrações e microfotografias produzidas por profissionais, e a publicação de artigos extensos eram marcas do periódico, como salientou o biblioteconomista Antonio Agenor Briquet de Lemos.
“Com sua característica de registro permanente das pesquisas realizadas no Instituto, a revista de Manguinhos, até a década de 1960, publicava textos que, pela sua extensão, não seriam aceitos em revistas dedicadas a artigos redigidos com as dimensões habituais. Um desses últimos trabalhos, por exemplo, foi a completíssima monografia sobre trematódeos do Brasil, com 886 páginas e 557 figuras, de Lauro Travassos, publicada em 1969”, observou o especialista em artigo publicado na revista Cadernos de Saúde Pública.
À esquerda, ilustrações de artigo de Maria Aparecida Vulcano sobre o borrachudo Simulium pruinosum publicado em 1959. À direita, fotos de habitações propícias à proliferação de barbeiros publicadas em artigo de Emmanuel Dias e Asa C. Chandler em 1949. Imagens: Reprodução MemóriasApós a paralisação de atividades no final dos anos 1970, a publicação foi retomada em 1980 com novo formato. Deixou de ser uma publicação institucional para tornar-se uma revista científica internacional.
O pesquisador José Rodrigues Coura, empossado na direção do IOC em 1979, liderou esse processo, assumindo o cargo de editor da revista.
“Três pessoas foram muito importantes na trajetória das ‘Memórias’ para que a publicação chegasse até aqui: Oswaldo Cruz, que criou a revista e foi o primeiro editor; Carlos Chagas, que publicou um artigo monumental e sucedeu a Oswaldo na edição; e o professor Coura, que resgatou a revista do período de paralisia editorial e iniciou a sua fase moderna”, afirma Adeilton.
A reformulação foi anunciada em editorial de 1980, com a informação de que a revista abria suas páginas para “trabalhos de outras instituições nacionais e estrangeiras com a condição de que sejam originais e de bom nível”.
Volumes impressos da fase internacional da revista. Durante alguns anos, capas apresentaram o subtítulo "An international journal of biological and biomedical research". Foto: Gutemberg BritoMantendo sua identidade, ‘Memórias’ se adaptou e assumiu protagonismo na comunicação da ciência contemporânea.
O periódico passou a contar com um conjunto de editores associados, incluindo especialistas de diferentes áreas do conhecimento. Em 1989, foi estabelecida a publicação de artigos em inglês.
“O movimento para colocar a revista em inglês começou quando Eloi Garcia era editor. Houve resistências, mas progressivamente a publicação passou a ser toda em inglês, o que era importante para a internacionalização”, recorda Momen.
Nos anos 1980, o inglês já era considerado a língua internacional da ciência. Muitas revistas institucionais buscavam se reposicionar, inclusive com mudanças de título.
Em 1989, o periódico ‘Annales de l'Institut Pasteur’, que tinha inspirado Oswaldo Cruz, passou a se chamar ‘Research in Microbiology’, ‘Research in Immunology’ e ‘Research in Virology’ (a divisão em três periódicos já tinha sido estabelecida antes da mudança do nome).
A alteração no título de ‘Memórias’ chegou a ser discutida. Parte do corpo editorial defendia a mudança para um título em inglês, mas a decisão de manter o nome da revista é comemorada atualmente.
“Hoje existem muitas revistas com nomes similares e ‘Memórias’ tem um nome único, que não se confunde com outras publicações. São 115 anos de tradição. Na área de medicina tropical e parasitologia, todos conhecem a revista”, avalia Adeilton.
Figuras de artigo publicado em 1987, por Galvão-Castro e colaboradores, que apresentou o primeiro isolamento do vírus HIV no Brasil. Foto: Reprodução MemóriasEm 1996, o periódico se tornou um dos primeiros no mundo a contar com versão online. O website apresentava os títulos e resumos dos trabalhos e disponibilizava os artigos completos em PDF. Tudo com acesso aberto.
“Nessa época, tinha algumas revistas que nasceram online, principalmente na área da computação. Mas poucos periódicos tradicionais, que eram impressos, colocavam os artigos online com medo de perder assinaturas. ‘Memórias’ foi a primeira revista impressa a entrar online no Brasil e uma das primeiras no exterior também”, conta Momen, que era editor da revista naquele período.
Dois anos depois, a publicação foi convidada a integrar o projeto piloto do programa Scielo, que começou como uma biblioteca de revistas científicas online com 10 periódicos editados no Brasil e atualmente contempla 16 países. A digitalização de todo o acervo do periódico, desde 1909, ocorreu no ano 2000.
Os próximos passos foram o estabelecimento do processo de submissão de artigos online, deixando de lado o recebimento de trabalhos e o envio de pareceres pelo correio, e a atribuição de número Identificador de Objeto Digital (DOI, na sigla em inglês) aos trabalhos. O código facilita a localização de arquivos online e garante a sua autenticidade.
Adotadas em 2007, as medidas contribuíram para o crescente reconhecimento da revista. “‘Memórias’ já tinha sido pioneira em disponibilizar os artigos na web. O processo de submissão passou a se dar da mesma forma que ocorria nas principais revistas internacionais. Tudo online, com DOI, publicação rápida e indexação nas principais bases de referências bibliográficas internacionais. Foi um processo intenso para isso", relata Ricardo, então editor do periódico.
Como resultado, a revista se tornou uma das primeiras publicações brasileiras a alcançar fator de impacto acima de 2, em 2009. O índice indica a frequência com que artigos publicados em um periódico são citados em outros trabalhos científicos num intervalo de dois anos.
À esquerda, imagens de microscopia mostram partículas do vírus Mpox em artigo de Miranda e colaboradores publicado em 2023. À direita, lêndea incompleta encontrada no cabelo da múmia do rei de Nápoles Fernando II de Aragão (1467-1496) registrada em imagem de microscopia em artigo de Fornaciari e colaboradores, de 2009. Imagens: Reprodução MemóriasEm 2015, a publicação passou a ser exclusivamente online, sem versão impressa, e o periódico aderiu ao Comitê de Ética em Publicação (Cope na sigla em inglês), reforçando o compromisso com a integridade na divulgação científica.
A editora da época, Claude Pirmez, ressalta o lugar de ‘Memórias’ na vanguarda da ciência aberta. Em 2016, durante a emergência sanitária causada pelo vírus Zika, a revista introduziu uma via de publicação acelerada para artigos sobre a doença, chamada de fast track. A partir de 2017, passou a incentivar os autores a depositar a versão preliminar dos artigos submetidos para publicação na plataforma Scielo Preprints.
“Foi uma das primeiras publicações brasileiras a se colocar dentro do preprint. No Fast Track, o artigo passava por um processo de diligência básico. Estando dentro dos preceitos éticos e com sentido, era feita a publicação online antes de enviar para os revisores. Os leitores da revista também são autores e capazes de criticar os trabalhos. Na ciência aberta, ‘Memórias’ ficou muito à frente de outras revistas”, diz Claude.
Em 2023, o periódico registrou fator de impacto 2,5, o que indica a média de vezes em que artigos publicados na revista foram citados em outras publicações científicas nos dois anos anteriores.
Considerando esse índice, ‘Memórias’ figurou como 9ª revista mais relevante do mundo no campo da medicina tropical e 14ª na área da parasitologia, além de registrar a 14ª posição entre as revistas brasileiras de todas as áreas do conhecimento.
Testemunha e protagonista da evolução na publicação científica. É assim que a revista Memórias dos Instituto Oswaldo Cruz chega ao marco de 115 anos.
Fundado por Oswaldo Cruz com o objetivo de divulgar as pesquisas realizadas no ‘Instituto de Manguinhos’, como era carinhosamente chamado o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), o periódico circulou pela primeira vez em abril de 1909.
Atravessando mais de um século, mantém-se entre as mais relevantes publicações científicas sobre doenças infecciosas, especialmente nos campos da medicina tropical e parasitologia.
Artigo que detalhou o ciclo da doença de Chagas foi publicado em 'Memórias', em 1909, com texto em português e alemão. Imagens: Josué Damacena e Reprodução MemóriasEm linha com as melhores práticas de editoração, ‘Memórias’ é uma revista internacional de acesso aberto diamante, no qual não há cobrança de taxas nem para leitores, nem para autores.
O editor-chefe do periódico, Adeilton Brandão, ressalta que ‘Memórias’ está entre as poucas publicações científicas centenárias do Brasil.
“Esse é um momento para ser celebrado. A história das revistas científicas no Brasil demonstra que são poucas as que permaneceram em atividade por tanto tempo”, afirma o editor.
Ao todo, mais de 7 mil artigos foram publicados no periódico em 115 anos.
Em todo esse período, houve apenas três anos em que a revista não foi publicada, de 1977 a 1979, devido à crise institucional e falta de investimentos na Fiocruz após a cassação de dez pesquisadores do IOC pela ditadura militar no chamado ‘Massacre de Manguinhos’, que ocorreu em 1970.
Editor de ‘Memórias’ entre 1993 e 2001 e, posteriomente, editor do ‘Boletim da Organização Mundial de Saúde’, publicado pela OMS, Hooman Momen destaca o sentimento de orgulho pela trajetória do periódico.
“Mais que felicidade, é motivo de orgulho. Uma revista científica chegar aos 115 anos é difícil em qualquer lugar do mundo e ainda mais no Brasil. Ter uma revista com a tradição de ‘Memórias’, mantendo a qualidade, sem cobrar assinatura para quem lê, nem taxa para o autor que publica é um grande valor”, afirma Momen.
Sala no Castelo de Manguinhos abriga a editoria científica da revista até os dias atuais. Foto: Josué DamacenaA relevância da publicação para a ciência brasileira é reforçada por Ricardo Lourenço de Oliveira, que ocupou o cargo de editor-chefe do periódico de 2007 a 2015.
“No campo das doenças infecciosas, 'Memórias’ tem vertente multidisciplinar, reunindo estudos de parasitologia, biologia molecular, vetores, reservatórios e outros. Sendo o Brasil um país que ainda sofre muito com esses agravos, é importante que tenha uma revista desta categoria, para difundir a produção científica”, afirma Ricardo.
O pioneirismo da publicação, que foi uma das primeiras revistas biomédicas tradicionais a entrar no ambiente online e adotar os princípios da ciência aberta, é destacado por Claude Pirmez, que foi editora chefe entre 2015 e 2020.
“A revista foi criada num contexto histórico e ambiente acadêmico muito diferente do atual. É impressionante ver a evolução de histórica ‘Memórias’, se adaptando a conceitos acadêmicos e, na maior parte das vezes, à frente do seu tempo”, declara Claude.
No dia 10 de dezembro, os 115 anos da publicação serão homenageados no projeto Somos Manguinhos. A sessão vai reunir diversas gerações de editores, colaboradores e autores de artigos. O evento será realizado às 10h, no auditório Emmanuel Dias – Pavilhão Arthur Neiva (campus Fiocruz Manguinhos – Av. Brasil, 4.365).
Segundo historiadores, ao criar ‘Memórias’, Oswaldo Cruz inspirou-se em instituições científicas brasileiras e estrangeiras que publicavam revistas para divulgar suas pesquisas, incluindo o Instituto Pasteur, de Paris, onde o pesquisador brasileiro estudou e conheceu o periódico ‘Annales de l'Institut Pasteur’.
Capa do segundo volume da revista, publicado em agosto de 1909. Foto: Josué DamacenaA criação da revista visava à comunicação científica tanto no Brasil quanto no exterior. O decreto de dezembro de 1907, que instituiu a publicação, afirmava: “as Memórias serão distribuídas pelas escolas profissionais, de medicina, de veterinária e de agricultura, existentes no país, constituindo objeto de permuta com as publicações estrangeiras do mesmo gênero”.
Outro decreto, de março de 1908, orientava que os artigos poderiam ser apresentados em diferentes idiomas, devendo ter sempre uma versão em português.
Na primeira edição, em abril de 1909, todos os textos foram publicados em dois idiomas, com versões em português e alemão, francês ou inglês, com escolha da língua estrangeira a critério do autor.
“O Instituto tinha muita colaboração com pesquisadores da Alemanha, França e Estados Unidos. O canal oficial de comunicação científica se dava pela troca de revistas entre as bibliotecas. Mas havia também o canal individual, de relações entre pesquisadores, que podiam enviar a revista inteira ou artigos impressos separadamente para seus colegas mundo afora”, conta Adeilton.
Livro-tombo guardado no acervo de 'Memórias' registra todos os trabalhos submetidos e publicados na revista entre as décadas de 1920 e 1980. Foto: Gutemberg BritoNa época, não havia oficialmente cargo de editor de ‘Memórias’. A publicação do periódico ficava sob responsabilidade do diretor do IOC.
Depoimentos de pioneiros de Manguinhos, como Henrique Aragão e Ezequiel Dias, destacam a marca do empenho de Oswaldo Cruz na publicação da revista, o que incluiu a montagem de uma gráfica no Instituto.
“Como não houvesse, na época, no Instituto, quem pudesse cuidar do assunto [a implantação da revista], ele [Oswaldo Cruz] tomou a si todo o trabalho, desde a escolha das máquinas impressoras, seleção dos tipos, encomenda do papel, entendimentos com litógrafos e especialistas na feitura de clichês, a seleção dos tradutores para os artigos e, finalmente, ainda a revisão das provas, sem demonstrar, como de costume, o menor enfado por todo o labor rotineiro que tomara a si”, conta Aragão.
A segunda edição de ‘Memórias’, em agosto de 1909, trouxe um dos artigos mais emblemáticos da ciência brasileira. O pesquisador do IOC Carlos Chagas publicou no periódico o artigo que detalhou o ciclo completo da nova ‘tripanozomiaze humana’, infecção descoberta por ele em Minas Gerais, depois nomeada como doença de Chagas.
Além de narrar o passo a passo da descoberta – que elucidou, de uma só vez, o parasito, seu vetor e a doença causada por ele – o trabalho apresentou minuciosamente a morfologia e o ciclo evolutivo do protozoário Trypanosoma cruzi. O texto foi acompanhado por mais de cem ilustrações, produzidas por Manoel Castro Silva, primeiro desenhista de Manguinhos.
O artigo foi citado na edição de maio de 1910 do ‘Bulletin Mensuel de l’Office International d’Hygiène Publique’, publicação do organismo precursor da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O reconhecimento internacional das ‘Memórias’ se refletiu na indexação da publicação nos principais periódicos que compilavam a literatura científica da área no século XX, como Index Medicus, Biological Abstracts e Tropical Diseases Bulletin.
À esquerda, ilustrações de artigo de Adolpho Lutz sobre esquistossomose publicado em 1919. À direita, foto dos formandos do Curso de Aplicação do IOC publicada em artigo de 1929. Imagens: Reprodução Memórias'Memórias’ permaneceu como uma revista institucional de 1909 a 1979. Nesse período, refletiu a produção científica do IOC, revelando o trabalho de seus pesquisadores para enfrentar as grandes endemias do Brasil.
Um artigo que analisou o perfil de artigos publicados em ‘Memórias’ apontou os agravos mais frequentes ao longo dos anos. O levantamento foi liderado pelo Laboratório de Comunicação Celular do IOC e publicado em ‘Memórias’.
Considerando o período de 1909 a 1980, a doença de Chagas foi o agravo mais citado, seguido pela hanseníase. Febre amarela foi destaque nas primeiras décadas do periódico, enquanto malária ganhou atenção a partir dos anos 1930.
Com frequência variada ao longo do tempo, foram publicados estudos sobre esquistossomose, tuberculose, leishmanioses, verminoses, peste e outros agravos.
Além de resultados de pesquisas, o periódico abria espaço para relatos sobre atividades do IOC. O atual editor de ‘Memórias’ destaca documentos com valor histórico, como os relatórios sobre expedições científicas na Amazônia, no Centro-Oeste e no Sul do Brasil, assim como no Paraguai e na Bolívia.
À esquerda, fotos publicadas em artigo de Olympio da Fonseca, em 1929, sobre expedição de pesquisadores do IOC à Bolívia. À direita, ilustrações de trabalho de H. C. de Souza-Araújo sobre hanseníase publicado em 1929. Imagens: Reprodução Memórias“Na edição de 1929, há um relatório minucioso sobre o Curso de Aplicação do IOC, que treinava profissionais formados em faculdades de medicina, farmácia, veterinária e outras, como se fosse uma especialização. O artigo conta com depoimentos de alunos do curso e vemos que, nessa turma, havia duas mulheres, o que não era comum na época”, conta Adeilton.
Pesquisas que analisaram a trajetória de ‘Memórias’ apontam que a publicação se destacava no cenário editorial brasileiro. Um dos fatores que contribuíam para isso era a oferta de traduções, que se manteve para todos os artigos até 1915 e para alguns trabalhos em toda a fase institucional.
Além disso, a qualidade gráfica, com ilustrações e microfotografias produzidas por profissionais, e a publicação de artigos extensos eram marcas do periódico, como salientou o biblioteconomista Antonio Agenor Briquet de Lemos.
“Com sua característica de registro permanente das pesquisas realizadas no Instituto, a revista de Manguinhos, até a década de 1960, publicava textos que, pela sua extensão, não seriam aceitos em revistas dedicadas a artigos redigidos com as dimensões habituais. Um desses últimos trabalhos, por exemplo, foi a completíssima monografia sobre trematódeos do Brasil, com 886 páginas e 557 figuras, de Lauro Travassos, publicada em 1969”, observou o especialista em artigo publicado na revista Cadernos de Saúde Pública.
À esquerda, ilustrações de artigo de Maria Aparecida Vulcano sobre o borrachudo Simulium pruinosum publicado em 1959. À direita, fotos de habitações propícias à proliferação de barbeiros publicadas em artigo de Emmanuel Dias e Asa C. Chandler em 1949. Imagens: Reprodução MemóriasApós a paralisação de atividades no final dos anos 1970, a publicação foi retomada em 1980 com novo formato. Deixou de ser uma publicação institucional para tornar-se uma revista científica internacional.
O pesquisador José Rodrigues Coura, empossado na direção do IOC em 1979, liderou esse processo, assumindo o cargo de editor da revista.
“Três pessoas foram muito importantes na trajetória das ‘Memórias’ para que a publicação chegasse até aqui: Oswaldo Cruz, que criou a revista e foi o primeiro editor; Carlos Chagas, que publicou um artigo monumental e sucedeu a Oswaldo na edição; e o professor Coura, que resgatou a revista do período de paralisia editorial e iniciou a sua fase moderna”, afirma Adeilton.
A reformulação foi anunciada em editorial de 1980, com a informação de que a revista abria suas páginas para “trabalhos de outras instituições nacionais e estrangeiras com a condição de que sejam originais e de bom nível”.
Volumes impressos da fase internacional da revista. Durante alguns anos, capas apresentaram o subtítulo "An international journal of biological and biomedical research". Foto: Gutemberg BritoMantendo sua identidade, ‘Memórias’ se adaptou e assumiu protagonismo na comunicação da ciência contemporânea.
O periódico passou a contar com um conjunto de editores associados, incluindo especialistas de diferentes áreas do conhecimento. Em 1989, foi estabelecida a publicação de artigos em inglês.
“O movimento para colocar a revista em inglês começou quando Eloi Garcia era editor. Houve resistências, mas progressivamente a publicação passou a ser toda em inglês, o que era importante para a internacionalização”, recorda Momen.
Nos anos 1980, o inglês já era considerado a língua internacional da ciência. Muitas revistas institucionais buscavam se reposicionar, inclusive com mudanças de título.
Em 1989, o periódico ‘Annales de l'Institut Pasteur’, que tinha inspirado Oswaldo Cruz, passou a se chamar ‘Research in Microbiology’, ‘Research in Immunology’ e ‘Research in Virology’ (a divisão em três periódicos já tinha sido estabelecida antes da mudança do nome).
A alteração no título de ‘Memórias’ chegou a ser discutida. Parte do corpo editorial defendia a mudança para um título em inglês, mas a decisão de manter o nome da revista é comemorada atualmente.
“Hoje existem muitas revistas com nomes similares e ‘Memórias’ tem um nome único, que não se confunde com outras publicações. São 115 anos de tradição. Na área de medicina tropical e parasitologia, todos conhecem a revista”, avalia Adeilton.
Figuras de artigo publicado em 1987, por Galvão-Castro e colaboradores, que apresentou o primeiro isolamento do vírus HIV no Brasil. Foto: Reprodução MemóriasEm 1996, o periódico se tornou um dos primeiros no mundo a contar com versão online. O website apresentava os títulos e resumos dos trabalhos e disponibilizava os artigos completos em PDF. Tudo com acesso aberto.
“Nessa época, tinha algumas revistas que nasceram online, principalmente na área da computação. Mas poucos periódicos tradicionais, que eram impressos, colocavam os artigos online com medo de perder assinaturas. ‘Memórias’ foi a primeira revista impressa a entrar online no Brasil e uma das primeiras no exterior também”, conta Momen, que era editor da revista naquele período.
Dois anos depois, a publicação foi convidada a integrar o projeto piloto do programa Scielo, que começou como uma biblioteca de revistas científicas online com 10 periódicos editados no Brasil e atualmente contempla 16 países. A digitalização de todo o acervo do periódico, desde 1909, ocorreu no ano 2000.
Os próximos passos foram o estabelecimento do processo de submissão de artigos online, deixando de lado o recebimento de trabalhos e o envio de pareceres pelo correio, e a atribuição de número Identificador de Objeto Digital (DOI, na sigla em inglês) aos trabalhos. O código facilita a localização de arquivos online e garante a sua autenticidade.
Adotadas em 2007, as medidas contribuíram para o crescente reconhecimento da revista. “‘Memórias’ já tinha sido pioneira em disponibilizar os artigos na web. O processo de submissão passou a se dar da mesma forma que ocorria nas principais revistas internacionais. Tudo online, com DOI, publicação rápida e indexação nas principais bases de referências bibliográficas internacionais. Foi um processo intenso para isso", relata Ricardo, então editor do periódico.
Como resultado, a revista se tornou uma das primeiras publicações brasileiras a alcançar fator de impacto acima de 2, em 2009. O índice indica a frequência com que artigos publicados em um periódico são citados em outros trabalhos científicos num intervalo de dois anos.
À esquerda, imagens de microscopia mostram partículas do vírus Mpox em artigo de Miranda e colaboradores publicado em 2023. À direita, lêndea incompleta encontrada no cabelo da múmia do rei de Nápoles Fernando II de Aragão (1467-1496) registrada em imagem de microscopia em artigo de Fornaciari e colaboradores, de 2009. Imagens: Reprodução MemóriasEm 2015, a publicação passou a ser exclusivamente online, sem versão impressa, e o periódico aderiu ao Comitê de Ética em Publicação (Cope na sigla em inglês), reforçando o compromisso com a integridade na divulgação científica.
A editora da época, Claude Pirmez, ressalta o lugar de ‘Memórias’ na vanguarda da ciência aberta. Em 2016, durante a emergência sanitária causada pelo vírus Zika, a revista introduziu uma via de publicação acelerada para artigos sobre a doença, chamada de fast track. A partir de 2017, passou a incentivar os autores a depositar a versão preliminar dos artigos submetidos para publicação na plataforma Scielo Preprints.
“Foi uma das primeiras publicações brasileiras a se colocar dentro do preprint. No Fast Track, o artigo passava por um processo de diligência básico. Estando dentro dos preceitos éticos e com sentido, era feita a publicação online antes de enviar para os revisores. Os leitores da revista também são autores e capazes de criticar os trabalhos. Na ciência aberta, ‘Memórias’ ficou muito à frente de outras revistas”, diz Claude.
Em 2023, o periódico registrou fator de impacto 2,5, o que indica a média de vezes em que artigos publicados na revista foram citados em outras publicações científicas nos dois anos anteriores.
Considerando esse índice, ‘Memórias’ figurou como 9ª revista mais relevante do mundo no campo da medicina tropical e 14ª na área da parasitologia, além de registrar a 14ª posição entre as revistas brasileiras de todas as áreas do conhecimento.
Permitida a reprodução sem fins lucrativos do texto desde que citada a fonte (Comunicação / Instituto Oswaldo Cruz)